sábado, 4 de outubro de 2014

Rio da Prata, Beleza e História


    Passou a ser assim chamado desde que no Sec.XVI, tal como nos conta Galeano no seu clássico livro “As Veias Abertas Da América Latina”, o índio Hualpa perdeu-se uma noite na região que hoje é a Bolívia, ao pé de uma montanha de quase 5 mil metros de altura, correndo atrás de uma lhama fugitiva e acendeu um fogo para aquecer-se.


Colônia de Sacramento com o Rio da Prata ao fundo.

    “A fogueira iluminou um filamento branco e brilhante. Era pura prata” Surgia assim a fabulosa Potosí.  Surgia para a ganância dos invasores espanhóis; para encher os cofres de Carlos V; para a exploração, martírio e quase extermínio da população indígena que por ali vivia: Charruas, Guaranis, Tapes e outros.

    Potosí, hoje uma das cidades mais pobres da Bolívia, tornou-se a mais rica de sua época. Em prata, igrejas, palácios, mosteiros foram erguidos. Historiadores falam em ferraduras de cavalos de prata; em procissões, onde para sua passagem se forravam com prata as ruas de Potosí; em festas para os nobres espanhóis ali residentes,quando as refeições eram servidas em porcelanas vindas da China, em cristais de Veneza em que as mulheres se perfumavam com essências trazidas da Arábia pisando em chão forrado de tapetes persas.

    Potosí abriu novas povoações nas margens do Rio da Prata proporcionadas pelo comércio de couro, feito com os fazendeiros e criadores locais.

    Nos finais do Sec XVI, pelo tratado da União Ibérica entre Espanha e Portugal, grupos de portugueses chegaram à Buenos Aires e passaram a fazer concorrência aos comerciantes espanhóis que ali tinham a exclusividade do comércio da prata. Todo ele feito pelo trabalho insano, sacrificante dos indígenas. Um antagonismo entre espanhóis e portugueses teve início.

    No Sec.XVII começa o tráfego de escravos negros vindo de Angola, trazidos por judeus portugueses, os chamados Cristãos Novos ou Marranos, aqueles que chegaram ao Brasil, perseguidos pela Inquisição em Portugal. Tornaram-se eles os senhores absolutos do tráfego negreiro que saindo de São Paulo e Rio de Janeiro vinham abastecer de mais mão de obra a América espanhola (América Central, Potosí e Buenos Aires) vindo aumentar o contingente de nativos indígenas já explorados impiedosamente.

Trecho do Rio da Prata.
    Quando em meados do Sec.XVII o tratado da União Ibérica foi cancelado, os portugueses de Buenos Aires foram expulsos e se espalharam pela banda oriental do rio, para o Uruguai, atual zona de Montevidéo (tal como a chamam os uruguaios). Como defesa de seu novo território, fundaram a Colônia de Sacramento. Então, o tráfego negreiro passa a ter ali a sua sede. Só no início do Sec. XVIII o governador de Sacramento desembarcou nela 1.654 escravos negros. Eram vendidos aos fazendeiros criadores da Banda Oriental.

    Para diminuir a troca comercial portuguesas naquela zona, em 1724 o governador de Buenos Aires funda a cidade de Montevidéo.

    Seu nome (conforme nos contam os guias turísticos) se deve aos nautas que percorrendo o Rio da Prata, avistando terras, lhes faziam marcações para identifica-las depois pelos montes que as cercavam. Então assim temos: Monte VI (seis em romano) d (sua direção) e (este) o (oeste) formando então a palavra Montevidéo.

    Porém, a prosperidade de Colônia de Sacramento crescia, pois além da troca de escravos por couro, também escravos eram vendidos a grupos espanhóis dominantes em Buenos Aires que, em troca, mandava à Sacramento a prata. Para tais grupos havia a vantagem de revender os escravos para o Chile e Peru por preços exorbitantes, muito superiores aos que haviam comprado.

   Em 1760, 50% da população de Sacramento eram escravos negros, na verdade moradores temporários, sempre à espera de serem enviados para os fazendeiros da Banda Oriental ou para comerciantes de prata argentinos. Porém, tal prosperidade não iria manter-se, pois após sete tentativas de invasões por parte de Buenos Aires, esta finalmente colocou aquela colônia portuguesa definitivamente na mão dos espanhóis.

Ruínas das Missões Jesuíticas no Rio Grande do Sul.

    Hoje, as lembranças do seu primeiro período, encontramos em Sacramento nas construções portuguesas resistindo ao tempo; em suas árvores copadas e bancos nas calçadas que atendiam o costume português dos vizinhos encontrarem-se ao entardecer para “jogar conversa fora”; nas tabuletas com escritos singelos, postas nos portais das casas, que naqueles anos do Sec.XVIII indicavam as atividades de seu morador.

     Em meio a tanta luta acontecida em suas margens, a região do Rio da Prata nos trouxe o belíssimo trabalho dos Jesuítas que surgiram para minorar o sofrimento dos índios Guaranis.

    Chegaram às suas margens já em 1609 implantando um sistema de reduções e garantindo a vigia sobre a navegação por toda a Bacia do Prata. Realizaram suas catequeses em povoações que abrangiam o Uruguai e Tape (atual Rio Grande do Sul), quando então fizeram multiplicar-se pela região os rebanhos de gado.

    Quando da fundação de Sacramento lá estavam eles. Porém, estiveram ali pouco tempo, pois logo fugiram aos ataques dos bandeirantes paulistas que chegavam em busca de escravos. Entraram então, com seus rebanhos e seus índios protegidos, nos territórios onde hoje é o Rio Grande do Sul acabando por fundar ali 7 grandes reduções. Na posse definitiva de Sacramento pelos espanhóis todas as terras ocupadas ali pelos Jesuítas ficaram para os espanhóis.

Sepé Tiaraju.
    Os episódios que mais macularam a beleza do Rio da Prata foram sem dúvida os da Guerra Guaranítica.  Em 1750 pelo Tratado dos Limites, Madri exigia a um total de quase 30 mil pessoas, entre indígenas, professores e instrutores Jesuítas, que abandonassem suas casas, seus plantios, suas lindas igrejas, suas oficinas de trabalhos artesanais, olarias e carpintarias. Apesar dos vários adiamentos do abandono, conseguidos pelos Jesuítas que esticou suas saídas por quatro anos, foi depois impossível evitar o início desta guerra, onde toda a mágoa dos índios, liderados pela figura ímpar de Sepé, explodia contra os exércitos espanhóis e milhares de soldados portugueses, naturalmente bem melhor armados e equipados do que a defesa guaranítica.

    Muitos padres foram considerados traidores à Companhia de Jesus e a Madri por se colocarem ao lado dos guaranis atacados e massacrados.  Contudo, em sua maioria os Jesuítas tiveram que optar por renunciar aos Sete Povos, abandonando todo seu trabalho de anos nas reduções, ou a desobediência às ordens enviadas pelo Geral da Companhia em Roma, o que significaria para eles certamente uma expulsão da Igreja.

    O Sec.XIX entrou tumultuado na região, trouxe várias invasões nos países limítrofes do Rio da Prata. Tivemos os ingleses, no auge de seu poderio econômico e colonial, invadindo Buenos Aires, dedicando-se também ao terrível e impiedoso tráfico de escravos, fazendo concorrência com Sacramento, permanecendo ali até que São Martin fez a independência.

Coxilhas (Pampas) gaúchos.
 
     Hoje, ao sairmos do Rio Grande do Sul, em direção a esta região do Prata, deixamos para traz nossas estâncias com seus longínquos horizontes e coxilhas, zonas plenas de solidão, pois seus atuais proprietários são as novas gerações que habitam nossas grandes cidades, chegando nelas apenas em visitas.

    Entramos nas praias deste rio no Uruguai, praias que conservam uma beleza nativa, algumas tais como naturezas intocadas. Chegamos à Montevidéo (esta cidade acolhedora que os gaúchos tanto amam) depois à Sacramento, tão bucólica que nos parece nunca ter sido sacudida por sofrimentos, para então atravessarmos o Prata em barco para atingirmos Buenos Aires, cidade linda com sua arquitetura madrilena majestosa.

    Uma parte pequena, é verdade, teremos visto da Bacia do Prata. Porém, ali já nos vem à lembrança todos aqueles homens que mourejaram em esforços inimagináveis na feitura do couro, que proporcionou a riqueza a seus descendentes; à lembrança os martírios infligidos aos nossos indígenas, considerados homens sem ter o direito a sequer ter uma alma, daqueles também infligidos os negros, peças, como eram chamados, marcados a ferro quente como animais e à lembrança a terrível opção requerida aos Jesuítas de terem fidelidade a sua Igreja ou aos índios que amavam e orientavam.

     A história desta região nos envolve, emociona, nos jogando intensamente em todas as nuances de dedicações, maldades, explorações, amores, e renúncias que os homens que nela viveram manifestaram.
 

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