sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A Bruxaria Feminina


A lenda bíblica cita Lilith como a primeira companheira de Adão, antecedendo, portanto à Eva. Atribui a ela uma divergência com Deus que a fez ser expulsa do paraíso. Há referências a ela tanto na Torá como no Talmud, livros sagrados do Judaísmo. Teria ela então ido conviver com o demônio. Tais ideias deu início ao pensamento que fez da mulher o centro das práticas bruxescas, dando à bruxaria uma conotação eminentemente feminina. Bruxaria significa então práticas e magias demoníacas induzidas a fazer o mal.
Lilith, a primeira
mulher de Adão.
   Lilith teria uma aparência dupla enganadora, uma face bela e jovem, mas pés de coruja e asas de morcego. Era de natureza arrogante, pois, segundo as escrituras sagradas judaicas, enquanto Eva foi feita de uma costela de Adão, portanto submissa a ele, ela, Lilith, teria sido feita do mesmo barro que ele, por isso igual a ele. Foi então a primeira mulher a rebelar-se contra o sistema patriarcal.
    Numa antiguidade muito remota lá pelo 3° milênio A.C. na região da Suméria, apareceu a primeira mulher bruxa de nome Lilake. Então os sumerianos passaram a crer numa deusa de nome Inana que protegia os homens de manifestações demoníacas femininas. Esta deusa prendia esta mulher maligna dentro de um grosso e imenso pé de Salgueiro para que ela não perturbasse os inocentes homens.
   Séculos depois, a Grécia nos deu a crença em Hécate. Era uma deusa encontrada nas encruzilhadas. Uma encruzilhada é, como bem sabemos através dos cultos Afro, o lugar onde vivos e mortos se encontram. Nelas os mortos recebendo dos vivos oferendas. Então, Hécate tinha o poder de afastar dali espíritos malignos e era por isso muito homenageada. Possuía um séquito de cães que habitavam as margens do rio Estingue ,o rio que leva ao mundo dos mortos. Tais cães latiam para chamar os moribundos a morrer, então os doentes temiam muito a figura de Hécate. Era por outro lado protetora das mulheres grávidas sendo chamada então de “parteira celestial”. Hécate era assim detestada por uns e amada por outros.
   Na Idade Média ,lá pelo século XV a vida feminina estava um caos. A nada a mulher tinha direito. E ao mesmo tempo os Sabás (encontros bruxescos) proliferavam. Provavelmente seus maiores frequentadores eram mesmo as mulheres. Podia-se bem compreender o porquê: Casavam se muito meninas ,entre 12 e 13 anos, com homens bastante mais velhos do que elas. Estes, seguidamente as deixavam durante meses para irem guerrear em feudos distantes. Elas então fugiam de casa para irem à Sabás levando no coração esta esperança: Livrarem-se através de magias desses maridos que viam como opressores. Vê-los ,quem sabe, transformarem-se em lobos que vagariam perdidos pelas florestas sem possibilidade de um retorno. Para o recurso de saciarem desejos sensuais e românticos juvenis tinham sempre à mão pajens guardiões jovens que habitavam mansões e castelos e que as vezes muito providencialmente ficavam encarregados de cuida-las.
Cerridwen e seu caldeirão.
   Numa reação da Igreja ao comportamento destas esposas meninas, em 1484 foi escrito o livro “Malleus Maleficarum” (O Martelo das Feiticeiras) por dois inquisidores. Este foi o documento fundamental que desencadeou a maior onda de perseguições e horrores ao feminino nas sociedades europeias pelos séculos que se seguiram. Fala-se que em Saragoza, na Espanha, teria sido queimada a primeira vítima na fogueira uma mulher de nome Gracia la Valle.
   Quando hoje passamos pelo Caminho de Compostela ouvimos falar das bruxas de Zugarramurdi o mais famoso caso na região de Navarra. Tal caso gerou um filme muito premiado em 2013 do mesmo nome. “As Bruxas de Zugarramurdi” onde, segundo o enredo, foram queimadas na fogueira perto de trezentas mulheres, entre elas crianças. Foram acusadas de terem atos sexuais com bodes, tomarem caldo de sapo, e conviverem com animais como gatos negros, e corujas.
   Havia porém desde a Antiguidade uma diferença entre bruxas e feiticeiras. As primeiras dedicavam-se a magias maléficas, as segundas possuíam poderes paranormais de adivinhações, poderes extraordinários com os quais se vingavam apenas de magias feitas para o mal. Assim, segundo a lenda, tivemos feiticeiras instruídas nas cortes do rei Arthur na região de Avalon que era encoberta ao mundo por grandes nevoeiros. Resultou deste culto de Avalon a crença francesa em sua principal feiticeira (la sorcière): Morgane. Na floresta de Paimpont situada no norte francês, ela é lembrada até hoje. Lá existe um vale chamado “O vale sem retorno,” porque ali o espírito de Morgane espera os homens infiéis e vinga-se de infidelidades que recebeu de seu homem amado, jogando-os a cair de um penhasco, levando-os à morte. Na Idade Média, época de grande crença em magias, muitos homens infiéis não entravam naquela floresta, temerosos do espírito de Morgane.

Casa onde viveram as bruxas de Salém.

Votamos aos bruxedos lembrando o famoso caso das Bruxas de Salém, acontecido em Massachusetts no final do séc. XVII. Tudo começou quando mulheres simpatizantes do ocultismo tiveram pesadelos e foram examinadas por médicos .Estes atestaram que elas estariam embruxadas.  Todas do grande grupo que eram foram queimadas vivas. Tal episódio também, resultou numa extraordinária peça de teatro de nome” As bruxas de Salém “ do grande dramaturgo norte americano Arthur Miller, que foi casado com Marylin Monroe.
   Não era difícil descobrir-se se alguém era bruxa  Estas passavam pelo teste do Ordálio. Este consistia em fazer as acusadas colocarem as mãos e pés sobre brasas incandescentes e somente se não se queimasse , o que naturalmente nunca acontecia, tinham direito a um julgamento, também fraudulento, livrando-se então da fogueira.
   Não escapou também de perseguições. a heroína francesa Joana D’arc aquela que conseguiu acabar com a guerra dos cem anos. Após esta façanha memorável, viu-se envolvida em intrigas políticas e foi acusada de bruxaria e  ante   o Tribunal da Santa Inquisição  foi queimada na praça do mercado de Rouen.

Bruxas de Zugarramurdi queimadas na fogueira.

  
No Brasil, apesar da afro-brasileira ter expandido em todo o nosso território uma magia rica em amuletos , despachos ,guias, para se obter o “corpo fechado” e aceitarmos práticas de possessões bem semelhantes as do Vodu haitiano, apenas em um dos nossos Estados existiu o protótipo perfeito da bruxa, na verdadeira conotação do termo: Em Santa Catarina após a chegada dos imigrantes das ilhas dos Açores em 1748.
   Franklin Cascaes foi  o grande conhecedor e   amante das particularidades da antiga Vila Nossa Senhora do Desterro, antigo nome de Florianópolis, Em seu precioso livro “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina” nos conta sobre as práticas bruxescas usuais em sua infância. Fala sobre um novelo de lã dado pelo demônio para a mais velha do bando de bruxas, que era uma espécie de cetro do poder que lhe era passado. Quando a bruxa estava por morrer ela subia pelos ares desenrolando o novelo, o que causava uma disputa para pega-lo, pois quem o conseguisse seria a nova chefe do bando. Conta-nos ainda que as bruxas faziam artes como dar nó nos rabos dos cavalos, galopar com eles pelos ares,  depenarem galinhas nos puleiros,  enliarem as linhas dos pescadores.
   Atualmente ainda encontramos lá mulheres bruxas em locais onde antigas crendices sobrevivem, como Ribeirão da Ilha e Santo Antônio de Lisboa. Em locais interioranos acredita-se existir bruxas embora não com as características sensuais das bruxas medievais São então convidadas a    se afastarem com orações como esta: ”Tosca marosca, rabo de rosca, grilhão nos pés, relho no traseiro.  Bruxa tarata bruxa, não  entre na casa por todos os santos e santos, amém.”
   Hoje no Estado, encontra-se mais mulheres apenas feiticeiras ou com função de benzedeiras muito procuradas a favor de “malinhados “pessoas que são vítimas dos chamados “olho grande”. Caso apareça na comunidade alguma pessoa advinhada como tendo poderes maléficos,  geralmente benzedeiras são chamadas  para neutralizar suas ações o que na Ilha se chama “Amarrar a bruxa “. Após mais de duzentos anos  de imigração açoriana constatamos que a velha concepção de que a mulher conta com um lado de poder mágico que lhe serve de defesa  contra realizações de desejos benignos e malignos ainda vive no imaginário de muitos na Ilha de Santa Catarina .
   Somos ressaltadas na religiosidade judaico-cristã como estas bruxas perseguidas ou com duas faces antagônicas de bem e mal  como a deusa Yeuá dos mitos afros. Ela, durante a noite, era a  belíssima lua cheia que refletida numa simples poça d’água apaixonava quem a fitasse. E, dava prazeres sensuais aos homens mas ao surgir o sol fugia dele, punha um manto preto sobre si para esconder uma face horrenda que possuía, tornando-se a escurecida lua nova.

Museu da Bruxaria, em Salém...
   Por outro lado, recebemos também de outras tradições muitas homenagens. Fomos deusas como a Isis egípcia. Ela que era as margens do Nilo, recebia de Ozires, o rio , de suas margens as suas aguas o seu sêmen fecundante. Então Isis fertilizava o Egito com espécies vegetais tão enriquecedoras como o papiro.
   Somos também consideradas Jacy, lua refletida nos rios amazônicos, somos ainda ali Jacy o grande recurso de pedidos de auxílio dos nossos ribeirinhos indígenas.
   Também já fomos Cerridwen a celta que trazia nas mãos um caldeirão onde preparava poções mágicas que traziam o dom da adivinhação. Foi ela que deu a Merlin o grande companheiro do rei Arthur, suas possibilidades  advinha tórias.
   Apesar de até a Idade Média sermos ainda consideradas pelo Cristianismo como símbolo do pecado, fomos depois resgatadas com todos os cultos dados à Maria, mãe do Cristo, em suas varias versões: Senhora das Dores, Senhora da Saúde, Senhora de Lourdes, Senhora de Fátima e tantas outras.
   O esoterismo nos reabilitou do crime judaico-cristão  do fato de ter feito o homem perder o paraíso por um simples gesto de curiosidade. Fez da curiosidade a maior dom feminino. Ensinou-nos que ela nos faz querer vivenciar o bem e o mal, encarnar-se varias vezes, evoluir. Enfim, tirou  da alegoria de Adão e Eva  a conotação sensual do pecado original.


Um comentário: