sábado, 23 de setembro de 2017

Milagre na Índia

   Olhos inúteis pelo véu da cegueira, quando virão luzes penetrar-te as pálpebras? Trevas espessas rodeiam-me a existência. Conceda-me, Krishna, homem-Deus, Teu favor, desta vez, agora!
   Sou eu o digno Brâmane que trilha o mesmo caminho cada ano. Olhos opacos, bengala nas mãos, sacola aos ombros. Levo a Ti, Ó Santidade, em Teu templo distante, oferendas, pedras raras, que encaixadas em Teu altar, Te darão mais pompa e dignidade.
Krishna.
   Meus pés sentem o solo tórrido e árido, minha mente, porém está povoada de confortadoras lembranças: Tapetes macios forrando os chãos que piso desde a infância, aconchegantes camas em que meu corpo tem repousado. Minha é a rica vivenda com jardins de fontes murmurantes, quantas vozes servis dentro dela me tem ouvido os comandos! Na verdade bem digna de minha nobre casta de brâmane é esta que tenho levado, No entanto, não me concedestes ainda, Ó doce Krishna, a luz de meus olhos e quanto a quero! Quanto!
   Oferendas já Te levei e muitas! Todas sem qualquer resultado! Mas, entre elas, sem dúvida, a mais preciosa é esta que Te levo agora. Humilde, esperançado, acaricio sob meus dedos safiras, rubis e topázios. Quanto belo ficará Teu altar, Sublime Amado!
   Sentidos diversos, muito mais apurados em mim que no comum dos homens, conduzem-me sem erro pelos caminhos que tantas vezes já passei! Cheiros e sons que percebo neles me são tão familiares!
   Já não sinto o cheiro pútrido da carne secando estendida sobre a choupana dos párias? As chagas apodrecidas da multidão de mendigos me tocando as narinas? A brisa do esterco, da urina de vaca com que o campônio desinfeta a casa, não me faz adivinhar a penúria de suas vidas? Podridão, incenso e aragem sanguinolenta dos tísicos, foram sempre os cheiros que me revelaram os inúmeros mendicantes de meu país.
   Contudo, nada devo eu, de opulenta casta fazer em favor disto. Tudo afinal não acontece por uma lei de reações às ações que eles mesmos plantaram? Segundo as inexoráveis leis do Altíssimo? Por que deixar-me abalar pelos lamentos e súplicas dos párias?  Se mendigos sonham com a liberdade e eu com a visão, que cada um siga o seu caminho, implorando a Tua graça, o Teu perdão.
   Entre a ladainha de tosses, o canto tristíssimo de quem, labutando, limpa fossas e excrementos, sigo eu, inativo e impassível. Em minha alma não pode alojar-se qualquer resíduo de compaixão.
   A noite está pondo já sombras refrescantes sobre a minha Índia, lhe ameniza a quentura, e meu corpo de brâmane necessita um descanso. O corpo do mundo também guarda ainda calor. Sinto-o quando, com a cabeça apoiada na sacola de pedras preciosas, deito-me sobre seu solo.
Sob mim a mãe Terra pulsa em ritmo de coração vívido, concretizando sua trajetória no cosmos, enquanto eu, verme sobre a sua superfície, espero que Tu, Ó imortal Krishna, me mude a sorte.
Krishna e sua flauta.
   Não está sendo fácil firmar o sono, Tenho, ao contrário alerta todos os meus sentidos. Ouço passos que estão ainda muito distantes. Tais passos porém, aproximam-se cautelosamente em direção a mim. Há no ar um cheiro fétido de párias, sussurros...Tenho já a certeza que um bando de salteadores quer roubar-me o carregamento de pedras raras. Preciso cautela, muita cautela para não perdê-lo aqui. Deixarei que mais se aproximem...
   Um dos párias tem já as mãos sob a minha cabeça. Toca-me a dádiva. Agora sim, num gesto repentino, eu lhe agarro o pulso esquálido, com a potência de quem sempre nutriu-se bem, viveu em abastança .Tua oferenda , Ó Senhor Krishna, está em jogo e eu reforço meu grito ,com toda a força da minha devoção a Ti:
   - Que intentas, ó paria amaldiçoado? Queres roubar a oferta que alguém leva para o seu Deus? Além de ofenderes à Krishna, ousas perturbar o sono de um digno brâmane?
   Mantendo o pária preso às minhas mãos, sacudo-o com arrogância. Ele, dobrando o corpo sobre o peso da própria humildade, toca várias vezes a cabeça ao chão e lamenta-se:
   - Ó nobre senhor, deixa que eu apodreça sobre esta terra! Seja eu mesmo tão impuro que nem na hora da morte o fogo purifique meu corpo de intocável! Tão profunda é a agonia de minha vida mísera, que esqueci-me de quanto é transitória! Não me promete o céu de Brahma mais delícias do que a tua carga de joias pode me dar? Seja eu sempre proscrito, ilustre brâmane, para sempre impuro.
  Retendo soluços, o pária vai silenciando-se e eu, Oh! Sublime Krishna, não posso impedir que o peso insignificante de seu braço em confronto com a força do meu próprio corpo me cause um súbito mal estar, que vá transformando-se em piedade e, por fim, num ímpeto de amor por aquele miserável homem, num amor tão fraterno e intenso como jamais senti.
   Minhas mãos se afrouxaram em seus pulsos e minha voz soa com uma suavidade nova, inusitada em mim:
   - Vá embora, intocável, leva contigo esta sacola! Distribui seu conteúdo entre o teu bando. Faça reverter essas joias em conforto para suas vidas execradas! Que o perfume dos lírios substitua em tua cabana o cheiro de urina e das chagas putrefatas! Que, daqui em diante, medites nas delícias do céu de Brahma, com os lábios adoçados pelo sabor de cerejas e damascos! Que sejas tão limpo, sadio e belo como a imagem de um deus! Leva a carga de nosso Senhor Krishna depressa! Leve-a enquanto te lastimo tanto! Vá, corre com ela!

Monte Kailash, onde segundo a mitologia
hindu, moram os deuses.

   Levanto o pária atoleimado e lhe grito: - Corre antes que me passe este instante de piedade, o primeiro em que um amor tão incontrolado me possui assim! Vá!
   Foi-se o pária. Tudo está silencioso neste vale deserto e eu deito-me ao chão com o peito agitado por emoções as mais contrárias. Lágrimas escorrem-me dos olhos inúteis ao lembrar que deixei, Altíssimo Mestre, de prestar-Te a homenagem devida. Teu altar ficará nu de rubis, esmeraldas e topázios. Neguei-Te a oferenda para doa-la a um intocável! Porém Amado, a transferência desta carga de pedras das minhas mãos para as dele, faz também meu ser exultar de leveza e liberdade, como se apenas ela fosse dar para mim um fruto, um rendimento que irá perdurar! Que exultação tão plena foi sentir naquele pária um irmão! Haverá, na verdade algo mais doce, Ó amado, do que poder–se chamar outro homem: ”meu Irmão” ?
   Mesmo que seja eu em seu lugar, agora um proscrito, que mantenhas em trevas irremediáveis os meus olhos... Eu nada quero mais... Meu ser todo vive o momento sublime do amor, da piedade... Está todo em paz.
   Em que alturas supremas andou minha consciência para que assim eu me pacificasse? Agora, porém, repentinamente ela volta a fixar-me em minha condição física! Meus olhos ardem, ardem muito! Tal como se uma chama abrasante estivesse junto a mim. Mas, se trevas rodearam-me sempre e sempre! Que luzes são estas penetrando-me as pálpebras?
   Eu vejo luzes! Vejo! É o milagre! O milagre por tanto tempo esperado! Por fim, Senhor, me agraciaste!
Distingo já no céu de minha Índia miríades e miríades de estrelas!
   O chão até onde enxergo na distância as montanhas, até aonde sumiu correndo o pária, o meu irmão, é um lençol de minúsculos grãos que cintilam sob o luar.  Um mundo de deslumbrante beleza é primeira visão que me estás concedendo, Ó Krishna, ser divinizado!

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