quinta-feira, 24 de maio de 2018

O Povo Cigano de Sara

Santa Sara.

O dia 24 de Maio é aquele consagrado à santa Sara padroeira dos ciganos.
             Em regiões como a de Camargue na França e especialmente na Provence, as peregrinações para onde ocorrem ciganos do Egito e da própria Europa, já é uma tradição secular.
             Tais homenagens à Sara se estendem até o dia 25, levando em procissões sobre andores enfeitados de cores vivas, a imagem da santa de pele tão escura quanto à dos ciganos e em muitas tendas espalhadas pelo mundo ela é cultuada.
         Lembrei-me então de minha visita anos atrás á Provence onde cheguei a assistir tais festividades e me foi narrada a seguinte história, talvez lendária:
           Por volta do ano 70 após o Cristo, fugitivos das perseguições aos cristãos na Judeia, a deixou, tomando um barco muito tosco, com poucas condições de navegar, o que provavelmente os teria afogado. Porém, por um milagre, através do Mediterrâneo conseguiram aportar numa praia ao sul da França, ficando depois o grupo abrigado na região do Camargue. O grupo contava então com 3 Marias: Maria Madalena, Maria Salomé, Maria Jacobé e Marta.

Igreja de Les-Saint-Maries-de-la-Mer.
              
Lenda ou não, o certo é que o local, que ao chegarem chamava-se “Le petit Rhone”, passou a chamar-se “Les-Saintes-Maries–de-la Mer”. Com elas veio também uma cigana egípcia de nome Sara, serviçal de uma das Marias.
             Na convivência com elas certamente foi quando a cigana adotou o Cristianismo que se espalhou depois entre o seu povo, hoje constituído de agrupamentos devotamente cristãos (lembremos que a estátua de Nossa senhora Aparecida do Norte é também intensamente venerada pelos ciganos brasileiros).
            Como a tradição cigana é absolutamente oral (jamais registraram por escrito a sua História) todas as conjecturas sobre a origem do povo de Sara são enevoadas, envoltas em mistérios. Contudo, os ciganos contam entre eles com muitos anciãos que são exímios narradores. Esses afirmam ter o povo cigano a sua origem na Índia. Isto será bem possível, pois os estudiosos de línguas nos dizem que o Romanê, língua cigana, tem incontestes raízes nos idiomas mais antigos da Índia.
             Ali, teriam sido nômades, sempre em movimentação. Não eram bons cavaleiros, mas criavam, tinham e negociavam cavalos, que usavam para puxar suas carroças condutoras de apetrechos de suas tendas, à cada mudança feita. Quando pararam por um tempo mais longo, foram perseguidos por tribos muito aguerridas, o que os obrigou a se espalharem pelo mundo, sendo o seu primeiro lugar a habitar, o Egito.
            Outras narrativas de anciãos jogam suas tradições também para um tempo bem distante pois contam que já pela época de Júlio Cesar (Séc.V A.C.) já havia ciganos em Roma. São descritos trabalhando ali em circos, fazendo mágicas e bruxarias, contando histórias, prevendo catástrofes através de símbolos. Era lá uma classe social marginalizada a qual os tributos devidos à Cesar eram cobrados com violência . A eles só cumpria obedecer.


Crianças ciganas.

            Aliás, os ciganos sempre foram perseguidos. Na Idade Média, a Inquisição os perseguiu pois suas práticas de tarólogos, astrólogos, quiromantes, seus trabalhos com pêndulos, leituras em copo d’água, jogos moedas, eram todos rotulados de bruxaria.
            Na Idade Moderna tiveram as perseguições do Nazismo. Por elas morreram 600.000 ciganos.  Suas peles escuras nada os favorecia em meio a uma doutrina arianista que refugava aqueles que não a tivessem clara para serem considerados da “raça pura” ariana. Assim como os judeus, também foram levados à Campos de Concentrações.
            Há uns séculos atrás a maioria cigana eram analfabeta, mas a modernidade a contagiou e já no Séc. XX  encontramos muitos de seus descendentes estudando. São já ciganos sedentários. Há uns 27 anos, uma pesquisadora, diretora do Centro de Estudos Ciganos no Brasil, publicou várias obras e inúmeros artigos sobre a sua cultura. Nele, nos conta as entrevistas que teve com ciganos formados em advocacia, medicina, professorado, psicologia, antropologia  e entre eles já mulheres com cursos secundários.
          No entanto, mesmo influenciados que sejam pela modernidade, não abandonam seus hábitos diários seculares. Quando constroem uma casa já a situam em grandes terrenos para colocarem ao lado uma tenda. Alguns entrevistados  da pesquisadora lhe afirmaram se sentirem emparedados, tolhidos em sua liberdade se não se proporcionarem de tanto em tanto dormir na tenda. Geralmente dormem pouco e o importante é saírem à noite para sentirem as estrelas sobre suas cabeças.
          A selva de pedra de nossas metrópoles não os atrai. Preferem viver em cidades pequenas onde através de suas organizações administrativas (e hoje elas já são algumas) podem recorrer a vereadores e prefeitos amigos para lhes proporcionarem local onde colocar suas tendas
          Pela própria vivência de percorrerem países,  assimilam alguns de seus hábitos, do que resulta grupos diferentes entre si. Assim temos os grupos Calon, o Rom, o Kalderashi, o Ragare. Porém, são pacíficos e nunca ouvimos notícias de lutas entre eles.
          Prezam a amizade e quando uma afinidade é grande entre duas pessoas, podem sacraliza-la fazendo entre si um pacto. Dão uma picada de agulha nos dedos de ambas  e depois uma chupa uma gota de sangue da outra, estando assim ritualizada uma amizade eterna. Costumam firmar relações com amigos  com encontros chamados “brodes”, espécie de saraus onde dançam, contam historias e declamam poesias.


Cartomante cigana.

         Quanto a sua religiosidade são monoteístas, nunca se envolveram com deuses. Cristão, creem na vida pós a morte, não exatamente como faz o Espiritismo no seu intercâmbio com desencarnados, mas como supersticiosos que são os ciganos, temem as almas de falecidos que podem, conforme pensam, vir a lhes cobrar algo. Acreditam na alma imortal que chamam de “Mulé”.
          Seus casamentos são monogâmicos e as meninas são dadas em casamento muito cedo, logo que lhes aparece a primeira menstruação. Geralmente é requerida a virgindade a mulher noiva. Dificilmente veremos um cigano casado com uma não cigana e vice versa, pois são muito zelosos da preservação genética da sua raça.
        Sobrevivem com homens (refiro-me aos não letrados) fazendo lindos tachos, utensílios e pingentes de cobre, colchas, tapetes. As mulheres (que são mães amorosas) contribuem para as finanças domésticas com a Quiromancia e a Cartomancia. Com elas asseguram ter sempre belas  bijuterias que tanto gostam de usar.
        As lendas narradas pelos anciãos são de grande beleza como esta: Um cigano violinista sonhava que um dia um pássaro conseguisse reproduzir as suas belas melodias. Esperou por isto toda a sua vida. Um dia ficou velho e morreu. No mesmo dia, sobre uma galho, surgiu um pássaro muito amarelo e cantou, cantou, imitando a melodia do violinista. Assim nasceu o Canário que reproduz, com perfeição, toda a magia de um violino cigano.
       Aqueles ciganos já letrados, devido talvez pelo seu milenar amor pela natureza, tendem a ser poetisas e poetas inspirados. Aqui, reproduzo um verso  de Any Reis do grupo Ragari, tirada do livro “Lendas e histórias ciganas” pág.154.
                                     
                                             Somos  
                                                           
Livres como os campos                     imprevisíveis como a estrada
Misteriosos como o mar                    leves como o ar
Andantes como o rio                         Argutos como a raposa 
Secretos como os bosques                 Sentimentais como a musica
Ligeiros como os ventos                   Verdadeiros como as crianças
Ardentes como o fogo                   Incompreendidos como a verdade
Cautelosos como a noite                   Assim somos nós, ciganos.


       Em um povo onde os seus fatos históricos não foram registrados, que suas tradições se difundem de boca à ouvido, é possível que o destino de sua cultura seja ir pouco a pouco se perdendo.
       Porém, mesmo que o povo de Sara desapareça, nós jamais o esqueceremos. Nossas crianças continuarão a lembrar de suas habilidades de acrobacias nos circos, a lembrarem da paixão dos ciganos pelos picadeiros; teremos no pensamento a inigualável destreza e graça com que dançam numa  apresentação de Flamenco; Continuaremos a sonhar com a sorte que nos foi favorável numa leitura de mãos; E, podemos ainda, seguindo o exemplo dos ciganos, pedir à santa Sara que esta sorte favorável nos seja concretizada.

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