“Era
apenas uma flor qualquer,
uma flor de mato”.
Para a velha caminhando na
calçada, nada dizia o barulho de martelos e guindastes levantando tijolo a
tijolo o edifício da pequena cidade. Nem progresso dizia, nem desenvolvimento(palavra
que ela ouvia o povo tanto apregoar).
Nada além de ruídos exasperantes, ruídos que mais magoavam seu corpo de anciã.
Tampouco o buzinar dos carros ou seu passar veloz congregavam-na ao mundo
evoluindo ao seu redor.
Tudo nela era abandono, prenúncio de
túmulo: o curvar de seu dorso buscando o caminho da terra, a frouxidão das mãos
levando a bolsa sebosa e vazia de bens. Não pertencia à classe daquelas que de
cabelos alvos e tratados, recebem dos netos: chinelos aveludados, lavandas
cheirosas ou quaisquer outras espécies de afagos. Não. Fora mulher de viver
rude, dolorido, de apenas dar-se, de estender o ventre generoso e de novo
murcha-lo por tantas vezes, para dar tantas vidas à luz que já nem podia
enumera-las; de servir em labutas pesadas a bem de alimentá-las. Cada filho
agora em rumo distante ou ignorado. Como saber até se dentre os dois que
restavam, era Pedro, o que trabalhava nos fornos da fabrica, ou José o que ia à
pedreira o que lhe nascera primeiro?
Mas, também, o que isso lhe importava? Só o
que sentia mesmo eram a lassidão e a moleza de suas juntas, como se elas
estivessem a desmanchar-se; dor aguda cada vez que tentava espichar-se; vazio
no lugar da fronte quando queria reportar-se a fatos passados. Só a ruína de
seu próprio corpo a devora-la. Tudo isto em seus olhos: dureza, falta de
amanhã.
Porém, surge o milagre do cotidiano! Não
escolhe número de dores ou de anos vividos. Os olhos da velha repentinamente
revestem-se em fulgor de entusiasmo, em ternura de gente afortunada! Passava
ela justamente, lado a lado com o terreno abandonado, um dos poucos que o
progresso da cidade poupara. Esquina onde o mato crescida selvagem, acrescido
de galhos espinhosos que por ali todos usavam largar. Mas no meio dele estava a
flor. Uma única flor balouçando perfeita, intocada. Simples. É singela. Flor que
não serviria para ornamentar casa abastada. Sem nome que lhe desse qualquer
dignidade, fosse Cravo, ou Dália. Era apenas uma flor qualquer. Flor de mato. A
velha porém...
Seu esforço foi heroico! Embrenhou-se por
entre os galhos do terreno. Prendeu a saia em espinhos e ,levando-se em conta
como eram fracas as pernas que a levavam, safou-se com vigor de mocidade.
Seu objetivo era a flor. Pegá-la. Levá-la.
O peito da velha arquejou ao alcançá-la. Tem–na agora por entre os dedos
apertada. Novo esforço de retorno à calçada, com vitória nos olhos
embaçados. Se o contato com a flor
lembra-lhe a maciez na pele dos tantos bebês que gerara, ou o carinho do
primeiro namorado... Só ela sabe.
Vai a velha com seu tesouro singelo, já a
murchar-se contra o calor de seus dedos encarquilhados. Passos lentos mas rosto
iluminado. Acaricia com ambas as mãos pétala por pétala a brandura da flor,
talvez a única beleza que entre a sordidez de seu mundo, ela encontrou por
acaso.
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