segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Casamento na Matriz


A matriz de nossa cidade fervilhada de pessoas da classe “bem”. Eu entre elas, naturalmente. Toda nossa nata social compareceu. E não se podia fazer por menos. Naquela tarde se casava o descendente da mais destacada família de nossa comunidade.
    Nós, as mulheres leopoldenses, muito belas e chiques. Sabíamos disso. Havia euforia em nossos olhos e orgulho no de nossos maridos.
  Feita um leve genuflexão perante o altar e acomodada no banco que me coube, incontinente comecei a notar os detalhes de nossa elegância. Ali, um modelo que havia visto numa loja da capital, lá uma joia que eu juraria ser verdadeira, mas que o comentário geral já tachara como falsa. Inovações em sapatos e algumas senhoras mais ousadas portando até chapéus.
   Quando meus olhos davam por acaso no de qualquer um dos homens ou de suas caras-metades eu tinha a certeza que não só eu, mas todos nós estávamos exclusivamente ocupados com o aparato que fizéramos para aquele casório. E, enquanto a noiva não chegava, meus olhos mantiveram-se assim: daqui para ali. Numa destas excursões pelo templo, foram dar exatamente sobre a imagem do homem vestido apenas de tanga, pendurado numa cruz de madeira sobre o altar. Ora, mesmo outro que não fosse o Cristo, vestido daquele jeito, no meio da nossa gente engalanada só podia mesmo fazer os meus olhos pararem.
   Foi enquanto detinham-se ali, que comecei a sentir um mal estar ocupando-me a cabeça, como se eu estivesse completamente oca. Tal qual febre acusando infecção, através daquele sintoma, soube logo que qualquer coisa em mim e em nossa comunidade, ali tão aparatosa, andava errada. Quis serenar-me. Olhei de novo o Cristo e tentei vesti-lo, iguala-lo a nós. Desejei-o de terno impecável, brilhante no nó da gravata, sapatos luzidios, engraxados. Não fui feliz. Como jamais vi alguém vestido assim ter sua singular personalidade, pô-lo dentro destas roupas foi impossível. O máximo que consegui foi vesti-lo com aquela antiga túnica de Nazareno e sandálias de andarilho.
   Tentei então muda-lo por dentro, faze-lo pensar como nós. Nada tampouco. É possível imaginar o Cristo notando a pedra que faltava ao colar da mulher no banco ali adiante, como eu notara? Não. Ele permanecia na sua teimosa pureza, distanciado de nós. Achei melhor fazer-lhe promessas: vir ao templo apenas para orar pelo mundo. E já me sentia até melhor .Quase tão pura como se ele estivesse me banhando nas águas do Jordão.
Igreja da Matriz,
de São Leopoldo.
 Porém, irrompe a marcha nupcial... E, ah! Meus bons propósitos de cristã! O vestido da noiva fora tão comentado antes! Quem, incluindo eu, lembrou-se de orar pela ventura da noiva e esquecer o traje que levava?
   O desespero tomou-me. Aquele Cristo ali, eu estava certa, já poder algum tinha sobre mim. Sobre qualquer um de nós. A própria marcha de Mendelson tocando no coro, soava-me como se fosse aquelas trombetas romanas que anunciavam que uma decadente sociedade achava-se reunida.
   Em nossa matriz, rodeada de santos nos altares e com odor de círios nas narinas, eu precisava urgente de um milagre. O milagre que me fizesse crer na ascendência que aquele Cristo por ventura ainda tivesse sobre nós. E ele veio!... A propósito! A tempo! Com toda a beleza que o cotidiano contêm.
   Os noivos no altar. A cerimônia começando. De repente, aquele barulhinho de tamancos, pisando com cuidado e respeito lá na entrada da matriz. Sem nos voltarmos todos sabíamos quem entrava: Darcy, o retardado mais conhecido de nossa cidade. Sorriso ingênuo e confiante. Segurando nas mãos o chapéu que com humildade tirara na porta do templo. Sem orgulho, consciência pesada, ou qualquer concorrência com nossos trajes caros. Passou assim por nós e foi com todo o direito que lhe dava a casa de Deus, sentar-se lá no primeiro banco. Só o que desejava era estar junto a nós, participar com os de sua comunidade um momento de alegria.
   Entrasse ele em outro lugar onde nos reuníssemos para festejos, por certo com carinho,(quem em nossa cidade não tem carinho por ele?) mas, com firmeza, o retiraríamos. Nosso orgulho salvo assim...  Mas ali, frente aquele Cristo vestido de tanga... Mesmo em nosso aparato romano... Quem de nós ousaria uma palavra contra ele? E, lá ficou o Darcy, protegido de nossos preconceitos pela presença do Nazareno, assistindo a cerimônia inteirinha...
   Certeza ele tinha, Também tenho eu agora: a ascendência do Cristo mora intacta em nós. Mora em mim.

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