Cosme
e Damião
O dia 26 de setembro me remete a uma das
lembranças mais felizes de minha infância. O culto a São Cosme e São Damião. Eu
desconhecia naturalmente que eles haviam sido no Séc. III DC. Médicos na Arábia
e na Ásia, que seus atendimentos aos pobres não eram cobrados nem que, como
cristãos fervorosos, fizeram inúmeros milagres.
Que me importava mesmo era participar do
ajuntamento de crianças em minha arborizada e aprazível rua, onde recebíamos
naquela ocasião balas e doces, os mais deliciosos. Cada um de meus vizinhos se
esmerava mais nas guloseimas que nos dariam. Não recebíamos neste dia qualquer
tipo de castigos ou advertências. Nele éramos nós, crianças, muito e muito
mimadas.
Hoje sei da crença que movia meus familiares
e vizinhos. Fossem eles católicos adoradores dos dois santos ou membros das
religiões afros cultores dos dois orixás gêmeos, seus Ibejís.
Só nós, crianças éramos os intermediários, aqueles
que intercediam junto a Cosme e Damião para que pudessem receber qualquer
benefício que desejassem deles. E, o preço que nós cobrávamos por esta
intermediação era recebermos gulodices e poder fazer neste dia consagrado aos
santos as traquinices que quiséssemos.
Quando me tornei adulta e fui estudar
religiões soube que os Ibejís que correspondiam a são Cosme e Damião
protagonizaram um dos milagres mais conhecidos da Afro Brasileira:
Iansã, esposa de Xangô, teve dois filhos gêmeos,
os Ibejís, mas um deles morreu. Então Iansã mandou fazer uma estátua de madeira
representando a criança e colocou-a num altar na casa. Dia após dia Iansã
orava, e conversava com a imagem como se viva estivesse. Esta prova desesperada
de amor materno comoveu tanto os Orixás que eles fizeram a estátua criar vida
novamente e, assim, Iansã teve seu amado filho de volta.
Congadas
Quando visitei a cidade de Ouro Preto,
encantei-me com a história de “Chico Rei”. Este, rei numa tribo do Congo,
chegou aqui em ferros para ser escravizado e perdeu sua esposa-rainha na cruel
e tenebrosa travessia por mar, sobrando-lhe apenas um filho.
Possuidor de uma inteligência privilegiada ,era
também um conciliador nato. Assim, em pouco tempo granjeou respeito, pacificando
revoltas entre escravos e liderando o trabalho na mina. Francisco (foi o nome
que aqui adotou) encantou de tal forma seu patrão, que este He facilitou horas
vagas e ele, trabalhando arduamente, conseguiu comprar a alforria de todos
aqueles que com ele vieram no navio e depois a própria mina de seu patrão
,quando este faleceu, conforme nos relata o historiador mineiro Agripa
Vasconcelos.
Chico fez amizade com o clero da cidade,
através de sua grande devoção, a três santos cultuados em Portugal: Nossa Senhora
do Rosário, São Benedito e santa Efigênia, para a qual mandou construir uma
bela igreja.
Um dia, terminada uma missa em louvor a
estes santos, os simpatizantes de Chico, em grande número, o coroaram e o
declararam novamente rei do Congo, com o beneplácito do sacerdote católico
daquela paróquia mineira.
Dançando e cantando alegre e ruidosamente
como fazia na África, Francisco, agora “Chico Rei”, dava início às Congadas.
A festa que vi contava com apenas um entre
centenas de grupos que hoje se paramentam em acordo as regiões de onde chegaram
os escravos e também dos que participaram da vida de Chico. Temos então nela os
moçambicanos, os congolenses, os angolanos, marinheiros, a rainha, o príncipe
seu filho, mineradores. Tudo se mesclando a um forte sincretismo às tradições
cristãs onde não eram esquecidos os santos negros cristãos
A musica executava-se através de
instrumentos como pandeiros cavaquinhos, cuícas e atabaques, sempre acompanhada
dos congados montados a cavalo. Jamais uma Congada , este bailado tanto festivo
como dramático, poderá ser esquecida.
Primeiro
dia do ano na praia (Rio de janeiro)
Fui caminhar na praia e encontrei suas
areias repletas ainda de flores brancas. Rosas lírios, palmas, com que na
véspera um povo devoto fez sua homenagem à Iemanjá. Certamente ela a merece.
Iemanjá ,a nossa dona Janaína, é a beleza esplendorosa do mar.
Os antigos gregos mitológicos viam o mar em
seu aspecto de fúria e destruição. Ele era Netuno , o deus que ao se revoltar
contra os homens, enfiava no fundo do mar seu garfo tridente e provocava
terríveis maremotos. Já os africanos que aqui chegaram como escravos, deram ao
mar uma personificação feminina: Iemanjá é para eles o vai e vem suave das
ondas que balanceiam tal qual o andar bamboleante e sedutor de uma mulher.
Quando o sol ou a lua emitem um raio sobre o
azul do mar, este nos mostra uma faixa de faiscantes gotas brancas cristalinas.
Foram estas as cores que os afros deram a Iemanjá: Azul e branco.
Na véspera, fogos de artifícios em um
espetáculo impressionante a louvara também, pois Iemanjá conta com muitos
aspectos. Que dizer então de sua grande fertilidade? No gigantesco ventre dos oceanos milhares e
milhares de cardumes ali vivem. Iemanjá, a mãe prolífera de todos os orixás, é
a própria vida manifestando-se em inumeráveis seres.
Sentei-me em suas areias a ali fiquei
entregue ao fascínio de Iemanjá, vendo nela aquela suave movimentação marinha
que através de seus cultos, os escravos tão bem souberam personalizar. Pensava em
como estes, saídos de tribos, conseguiram perceber com perfeição nossas
características femininas, ilustrando-as em seus Orixás. Focalizaram em Iansã a
nossa sensualidade, em Oxum a sedução mais inocente de nossa denguice e faceirice,
mostraram também em Nanã, a avó de todos eles , a sabedoria que podemos
alcançar na velhice e nesta pródiga Iemanjá, que- conforme suas crenças-
concebeu todos os seres terrenos, a nossa fertilidade.
O Boi Bumbá e o Círio de Nazaré
Foram dois festivais que jamais presenciei,
mas que meus pais, ele um poeta, ela dedicada à cultura, fosse ela histórica ou
religiosa, com frequentes viagens ao Norte, passaram a mim.
O Boi Bumbá, ou Bumba meu Boi, nos conta o
mito de pai Francisco e mãe Catarina. Esta, grávida, tinha desejos de comer uma
língua de boi. Francisco, homem simplório, acreditava que se não a satisfizesse
seu filho nasceria com deficiências. Mas era muito pobre. Nem um único boi
possuía. Então, tomado de temor, roubou e matou um boi de se patrão, um rico
boiadeiro. Este, sabedor do roubo, prende Francisco.
Aqui, o mito folclórico torna-se, na
verdade, um fato religioso quando entra nele as figuras de um padre e um pajé.
Ambos dão assistência espiritual a Francisco, homem que fora sempre tão honesto
e agora, muito sofrido, passava por humilhações. Através das magias do pajé e
das orações do padre, num grande milagre, o boi é ressuscitado e devolvido a
seu dono.
O final da teatralização do Boi Bumbá é de
grandes agradecimentos pelo milagre e os folguedos e danças comemoram o perdão
que finalmente o patrão dá a Francisco. Depois da dramaticidade do sofrimento
de Francisco, o perdão é o ponto principal, a alegria da festa a serem
atingidos.
O
Círio de Nazaré
Certamente o nome Nazaré significa muito
para nós cristãos pois foi lá que o Cristo cresceu e criou-se, foi de lá que,
caminhando até o lago pesqueiro de Cafarnaum, encontrou seus primeiros
discípulos.
A origem desta festa nos vem dessa cidade da
Galileia, onde é dito que São José, um carpinteiro, teria esculpido uma imagem
de madeira onde representava a Virgem com o menino Jesus ao colo. Imagem que
passa depois a ser adorada pelos primeiros cristãos. De lá, foi à Espanha e
chega finalmente a Portugal, à uma vila de pescadores que por homenagem à
imagem santa recebeu o nome de "Nazaré”.
Já a tradição brasileira nos diz que um
caboclo do Pará achou uma estátua nas margens de um igarapé e a levou para
casa. Tal estátua era uma réplica daquela venerada em Portugal. Porém, no dia
seguinte a estátua havia desaparecido e encontrada no mesmo local do seu
achado. Assim, o caboclo levou-a varias vezes à casa e sempre e sempre ela
retornava ao mesmo igarapé. Falou então o governador da Capitania (estava-se no
sec. XVIII) daquele estranho fenômeno e este mandou coloca-la na capela do
palácio sob a vigia de guardas mas novamente ela fugiu, voltando à beirada do
pequeno rio.
Compreendido então que Nossa Senhora não
queria sair dali, ergueu um ermida coberta de palha, similar aquela que a
abrigava em Portugal.
Hoje, a festa dura dias e compreende varias
romarias, terrestres e fluviais. Se meus
pais estivessem ainda aqui, veriam também nas romarias dezenas de motoqueiros
ruidosos e uma quantidade imensa de jovens em bicicletas.
Conta a festa com grupos de danças e
cantorias, brincadeiras e feiras de lindos artesanatos. Nos rios da Amazônia,
os ribeirinhos sem condições de irem até Belém, fazem suas próprias procissões
fluviais com o mesmo fervor.
O festival do Círio de Nazaré, onde são
carregados círios do tamanho dos pagadores de promessas, hoje reunindo dois
milhões de pessoas ,tornou-se Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO.
Para
mim, isso revela a força de um população muito simples que se impôs pela
sentimento cristão e conseguiu com ele sobrepujar qualquer manifestação
sofisticada de nossas sociedades mais eruditas e modernas.
O
Reisado ou Folia de Reis
Festival religioso, de origem colonial
portuguesa, foi o mais longo que presenciei pois durou desde o natal até o dia
6 de janeiro, dia de Reis.
Ele já
se iniciara, naquela comunidade nordestina, por grupos bem paramentados que
seguidos de palhaços foram dia após dias, barulhentamente de casa em casa para
anunciar a vinda do Messias.
Como isso se fazia pela manhã, geralmente
eram recebidos nas casas onde seus moradores lhes ofereciam um bom café.
Agradeciam declamando versos.
Já no dia 6 dava-se uma predominância à
dança comandada pelo ”Mestre”.Com o auxílio instrumental de sanfonas, violas e
chocalhos enfeitados de fitas coloridas dançava-se o Gingá, onde os figurantes
se balançavam abaixados, quase em cócoras. Também, cruzando com destreza as
pernas para frente e pra trás ,para um lado e para o outro , a dança do Encruzilhado era apresentada.
O Reisado refere-se a uma episódio da
história cristã em que os três Reis magos, Belchior, Gaspar e Baltazar, chegam
a Jerusalém para adorarem o menino Jesus e querem saber onde encontrar a quem
perigosamente chamaram de “Rei dos Judeus”. Sabedor disso, Herodes torna-se
indignado de que pudesse existir ali uma autoridade superior à sua. Ordena
então que sejam mortos todos os bebês que estavam nascendo em Belém. Um anjo,
porém alerta a São José e a Virgem Maria do perigo que Jesus corre. Acontece
então o episódio que a Cristandade chama de “fuga da sagrada família ao Egito”.
Também
os magos são advertidos por entidades angélicas e fazem um caminho diverso no
retorno a seus países.
A parte ingênua e supersticiosa entra no
festival por conta dos enfeites nos chapéus usados por figurantes. Estes são
ornados por muitos pedacinhos de espelhos. É acreditado que tais espelhos têm o
poder de rebater todos os maus pensamentos que os tocarem. São chapéus mágicos.
Então, muitos acreditam que saem do Reisado completamente purificados.
Eu tinha apenas nove anos quando em
Pernambuco assisti este Reisado e não tinha ainda nenhum mau pensamento a ser
refletido nos espelhos. Queria apenas seguir nas ruas aquelas coreografias alegres,
musicadas (sanfonadas) que saudavam um Deus–menino que eu nem entendia bem o
que de tão importante teria feito.
A
Lavagem do Bonfim
Um dia cheguei a Salvador justamente quando
acontecia o rito de lavagem na escadaria de sua matriz.
Confesso que comecei a caminhada de 8 km. Que
saía da igreja da Conceição da Praia até o Bonfim apenas levada por uma
curiosidade de turista .Porém no decorrer dela fui contagiada por aquela grande
devoção com que o fiéis tanto do Catolicismo como os do Candomblé cultuavam
Jesus e Oxalá. Os dois cultos têm afinal que homenageia-los pois os vêm cada um
como um filho representante do Deus supremo. O primeiro um filho enviado por
Deus Pai, o segundo enviado de Olurum .
No percurso, reuniam-se milhares e milhares
de pessoas lideradas em sua frente por mulheres que em tradicionais vestimentas
de baianas estavam realmente lindas. Suas roupas de algodão branco muito alvo, saias
rodadas enfeitadas por aquelas rendas que fazem a alegria consumista das turistas
no mercado de Salvador, batas, colares e pulseiras completavam a beleza de seus
trajes. Nas mãos já carregavam as bilhas e cântaros. Dentro delas muitas flores
mergulhadas em Agua de Cheiro. Tais águas já haviam sido preparadas dias antes
em vários terreiros de Candomblé e Umbanda com ervas perfumadas como Alfazema,
Manjericão, Flor de Laranjeira, deixadas repousar para receberem a benção de
orixás.
Essas aguas cheirosas seriam depois
despejadas nos 10 degraus das escadarias da igreja do Bonfim. Ali, essa oferenda de flores e perfumes seria
deixada porque a igreja não abriria suas portas. Já desde um tempo atrás, devido ao aumento considerável
da multidão que ocorria ao culto, por segurança este ficou restrito a chegada à
escadaria. Esta estava linda com seus jarros de flores.
É
assim mesmo com flores -nos diz o mito- que Oxalá deve ser louvado. Foram elas afinal que o fizeram obter sua
esposa Iemanjá.
Iemanjá era belíssima e tinha muitos
pretendentes. Com quem então se casaria?
Orumilá, o grande adivinho da Afro, ordenou que a cada um deles fosse dado um
cajado. No dia seguinte, o cajado que amanhecesse florido indicaria o seu
futuro marido. Ao amanhecer, só o cajado nas mãos de Oxalá tinha flores, muitas
flores.
Vi a
igreja cercada de barraquinhas com guloseimas da região, compradas logo que cessou
o rito. Após muitas vozes cantarem fervorosamente louvores a Jesus e Oxalá, numa
grande demonstração de união e aceitação de diferenças doutrinárias, apareceram
bandas que punham à tona a alegria que caracteriza o povo baiano, que
paralelamente é tão religioso que até se costuma dizer dele em outros estados:
“na Bahia todo dia é dia santo.”
È realmente impossível alguém assistir a
Lavagem do Bonfim sem sentir essas suas duas características: Alegria e
religiosidade.
Festival
junino a São João
Esta festa eu as realizava anualmente em
minha casa fazendo pequenas fogueiras, preparando uma farta mesa onde não
faltavam aipim cosido regado a melado, doce de aletria (massa adocicada) bolo
de milho, cuscuz e muita canjica. Na fogueira, assávamos a batata doce. Tal
como em meu lar infantil de avós portugueses fazíamos.
Quanto à fogueira, contava a meus filhos
esta história cristã: Santa Isabel, prima da Virgem Maria estava grávida e
contava com esta para auxilia-la no parto. Acontecia, porém, que Maria morava
na baixada de um morro enquanto Isabel habitava o seu pico. Então, as duas
combinaram: quando Isabel sentisse as primeiras dores do parto acenderia em
frente à casa uma fogueira para que a prima subisse à ajuda-la. Assim, na noite em que são João Batista nasceu
uma fogueira acesa o anunciava.
Minhas meninas, ainda pequenas, adoravam
vestir-se neste dia em roupas de algodão colorido e principalmente pintarem-se
muito. Faziam adivinhações ingênuas para saber sobre futuros namorados e havia
muita alegria quando cantávamos juntas: “São João! São João! Acende a fogueira
no meu coração!“.
Lembro-me de sentir-me muito feliz por estar
inserida nas tradições de meu povo, minha família e religião.
30
de dezembro (Culto assistido em Copacabana)
Em
suas areias um grupo religioso Afro introduzia os Orixás regentes do ano de
2016. Devido ao espetáculo de pirotecnia a acontecer na noite seguinte,
atraindo multidões, este rito fora antecipado.
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Rito fotografado por meu filho Alexandre, em 30 de dezembro de 2015. |
Os curiosos iam chegando e muitos eram os
atuantes diretos do culto que ali aconteceria. Estavam todos caprichosamente vestidos
em roupagens compridas muito alvas, e pareciam imunes, indiferentes à
assistência crescendo ao seu redor. Apenas esperavam contritos que o dirigente
do terreiro lhes abrisse os trabalhos.
Quando os regentes do ano, o par Oxalá e Iemanjá
foram anunciados, os cantos belíssimos de louvor e muita saudações de “Epa
Baba” e “Odó Iyá” eram ouvidos. Flores e velas acesas, os presentes prediletos
de Oxalá, numa noite muito clara, faziam as areias da praia resplandecerem de
beleza.
Logo se percebeu que vários componentes do
rito eram tomados em transe por outros orixás, pelo comportamento que exibiam.
Vi um deles uma moça, pondo a mão, repetidas vezes sobre a orelha como Obá
fazia para esconder a mutilação de sua orelha – conforme nos conta o seu mito.
Vi outras pulando num pé só tal como também o mito nos diz que Oxum dançava
porque queimara os pés. O “Aparelho” tomado por Omulú fazia-me lembrar de sua
vergonha pelas cicatrizes que a história Afro diz ter ele em seu rosto.
Enfim, os gestos apresentados, os ritos, eram
justificados nos seus antigos mitos. Senti ali nos descendentes daquele povo
negro que fora escravizado o desejo de manter suas lendas, não deixar que sua
história se perdesse, teatralizando-a. Conclui que vários orixás vieram fazer
suas saudações a Oxalá e Iemanjá porque certamente Olurum ,seu Deus maior, segundo
seus crentes ,grande conciliador fraterno de todos os filhos que criara, assim
gostaria que fizessem.
A noite já ia alta e o culto sob toque de
atabaques, seguia com suas gesticulações e posturas ,para muitos estranhas e
até burlescas.
Pela singeleza de suas crenças ,pela firmeza
em preservar suas origens, saí dali certa de que a Afro- Brasileira tem muito a
ensinar a nós cristãos.
Páscoa
em Ouro Preto
Lembro-me ainda das vigílias na madrugada da
Semana Santa para ver a montagem dos grandes tapetes de serragens coloridas em suas
ruas. Isso porque sua Páscoa não é somente uma manifestação de fé, mas
sobretudo uma manifestação de arte.
O
trabalho na madrugada é árduo. Porém, a dedicação a sua feitura é alegre, com grupos
de seresteiros anunciando, paralelamente, que o Cristo iria ressurgir. Os temas
dos tapetes são naturalmente cristãos e vi neles vários dos seus símbolos. Lá
estavam trabalhados com perfeição o Cordeiro de Deus representativo do
sacrifício do Cristo, a taça da Última Ceia, o Santo Graal. Também vi, nas
serragens, figuras de pelicanos, estes nos lembrando de sua lenda de que
alimentava os filhos famintos com o sangue de seu próprio peito, menção feita a
Jesus sacrificando-se.
O percurso que a procissão faria no próximo
dia seria longo atravessando ladeiras desde a igreja de são Francisco (famosa
por sua riqueza) e a de nossa senhora do Rosário. Nenhum daqueles espontâneos
artesões de tapetes estava preocupado pela certeza de que no dia seguinte, após
passar a procissão, todo o seu trabalho estaria destruído. Estavam certos: os
pés que os pisariam estariam abençoados não só pela energia devocional que os
movia desde o Domingo de Ramos . Sobretudo
porque todos que os pisariam estariam irmanados por uma união que não
distinguiria pobre de rico ,nem raças diversas. Juntos, todos tinham um só
desejo: louvar o Cristo.
Quando na noite seguinte cheguei à Praça
Tiradentes, com seus magníficos casarões coloniais, uma multidão já a tomara.
Sentei-me então ao chão sobre uma pedra mas nada me importava, porque a onda de
fé que sentia era muito forte, contagiante e até emocionante. Além disso, a
arte era ali mostrada não só no teatro que se desenrolava sobre um imenso
palco, eu a via também no vestuário e na arte joalheira com que se paramentavam
os figurantes. Elas nos levavam com detalhes minuciosos a nos lembrar dos
personagens históricos do Velho e do Novo Testamento.
Para todos nós que assistimos a essa
maravilhosa representação teatral, não faltaram episódios belíssimos como o
Lava Pés, o beijo de Judas, em sua época chamado de “ósculo sagrado” com que se
cumprimentavam os componentes de um movimento reivindicador de melhorias. Tendo
então Judas, desta forma, indicado Jesus aos guardas romanos como o líder do
grupo ali presente. Teatralizou-se também a escolha entre Jesus e o bandido
Barrabás, a lavagem de mãos feita por Pilatos, isentando-se de condenar um
justo. Tudo nos serviu como um verdadeiro e bem atuado resumo das tradições
cristãs.
A Festa do Divino
Foram
os Açorianos chegados ao litoral de Santa Catarina no Séc. XVIII que levaram
para lá esta bela festa religiosa. Assisti-a numa pequena vila de pescadores.
Sua origem, com certeza lendária, nos remete
a Portugal onde a rainha Isabel (que se tornaria uma santa depois) estava
casada com Don Diniz. Sendo este rei muito orgulhoso, ela resolveu um dia lhe
dar uma lição de humildade. Instou com ele para que deixasse sentar em seu
trono um mendigo tão devoto que estivesse presente no próximo ofício religioso
em honra do Espírito Santo. Assim, o inusitado aconteceu. O mendigo andrajoso não
só sentou-se no trono do rei, como recebeu uma coroação simbólica, e foi
ovacionado pelo povo ali reunido. Hoje, este é o episódio que enseja nos
festejos a coroação de um imperador.
Eu soube que as comemorações já haviam
começado dias antes naquela comunidade pesqueira, quando fieis católicos saíam
pelas ruas indo de casa em casa, fazendo a ”Romaria da Bandeira do Divino”.
Esta, um estandarte vermelho com uma pomba branca bordada em seu centro. Sua
finalidade era o recolhimento de donativos, nunca negados, que garantiriam os
gastos do evento.
Também dias antes já fora escolhido por uma
comissão da qual fazia parte o padre da paróquia, um adolescente da comunidade
para ser o imperador coroado.
No dia da festa ele estava muito belo.
Trazia no peito encasacado, uma faixa vermelha, calções de cetim, meias brancas
compridas e carregava nas mãos um cetro. Seguia-o um pajem e também velhos
pescadores respeitados. Um alferes empunhava a bandeira do Divino, abrindo
caminho para o seu cortejo. Tambores
eram batidos, fogos espocados e as cantorias chamadas “Folias do Divino”
animavam a sua passagem.
No Adro da igreja as barracas para oferendas
esperavam enfeitadas, vi alguns levando nas mãos, pés e braços de cera e gesso
como demonstração de bênçãos, recebidas. Porém, será dentro da própria igreja
que o menino imperador será coroado. Nestas missas ao Divino, o sacerdote
geralmente fazia o ato litúrgico do Pentecostes. Nelas é citado o Espírito
Santo como o grande fazedor de milagres.
Falava-se em são Pedro, um pescador inculto,
conseguindo falar no dia do Espírito Santo várias línguas, o que eu prefiro
entender como a referência a um homem simples que pelo entusiasmo de sua crença
no Cristo, conseguiu comunicar-se com um número imenso de estrangeiros, que
ocorriam à Jerusalém para os festejos judeus do Pentecostes, e até convertê-los.
Enfim vi naqueles dias após a quaresma uma
demonstração de fé tão sincera quanto espontânea. Inesquecível.
Nossa
Senhora dos Navegantes
Assisti anos atrás na praia do Pântano do Sul,
um dos últimos núcleos de pescadores da ilha de Florianópolis, uma festa em
louvor à Nossa Senhora dos Navegantes, também chamada por nós brasileiros de
Nossa Senhora das Candeias. Acontecia no
dia 2 de fevereiro. Um pequeno barco, enfeitado de bandeiras onde seria
colocada a imagem da santa vestida de branco e azul, deveria ser levado à
pequenina igreja e ali abençoado num ofício religioso. Seguido depois por
crianças vestidas de anjos, moradores e veranistas começam o cortejo pela rua.
Celebrado por um foguetório, o barco é carregado como um andor por alguns
pescadores que o levam em direção ao mar. Nas areias já os esperavam os barcos
maiores as vezes com pitorescos nomes gravados em seus cascos, também estes
enfeitados, para juntos, sempre precedidos pelo barquinho da santa, irem mar a
fora em procissão.
Sei, contudo, que a fé na Senhora dos Navegantes,
os milagres que pescadores dizem já terem recebido dela ,não se restringem àquela
vila . Milagres ela os tem feito em vários
outros locais deste Estado. Ninguém pode esquecer a benção milagrosa feita aos
ocupantes do barco “Sertaneja” em Laguna. Este, desaparecido a mais de um mês e,
após muitas buscas já dado como perdido, aparece na praia da mesma Laguna
intacto e com seus tripulantes vivos, apesar de esgotados por fome e sede. Até
o cão de bordo embora inerte de fraqueza estava vivo.
Os sinos da igreja de Laguna e todas as
capelas da região repicaram o dia todo, o povo saiu às ruas a festejar saudando
Nossa Senhora dos Navegantes que os trouxera vivos. A volta do “Sertanejo”
tornou o seu milagre inesquecível para os adoradores da santa.
Como Nossa senhora dos Navegantes faz uma
sincretismo na Afro Brasileira com Iemanjá, há uns poucos quilómetros do
Pântano do Sul, nas mesmas areias, vi um outro culto à noite se desenrolar .
Seguidores desta outra crença, iam ali celebrar a “Rainha do Mar”. Vi muitos fieis, após o rito, irem se banhar
nas águas, pulando as sete primeiras ondas surgidas. Por que sete afinal? Talvez porque nos
acostumamos a ver o número sete como o final de uma sequência de coisas ou
sentimentos que nos beneficiam. Assim, temos na Afro Brasileira, grande
influenciadora da nossa cultura, as sete linhas de seus orixás, no Cristianismo
os discípulos oriundos como Jesus de um povo ,o Judeu, que cultuava o castiçal
de sete velas, o Menorá, perguntando ao Cristo: “Devemos perdoar um inimigo
sete vezes?” Ao que o Cristo, em sua sempre pródiga misericórdia, responde : “Não
só sete, mas sete vezes sete.”
Terminei o meu dia 2 de fevereiro certa de
que seja através da crença no Cristo ou através da crença em Iemanjá, será
sempre pela Fé que afinal obteremos os nossos milagres.
Hoje, após estas festas assistidas, sinto-me
grata por ter testemunhado esta mesma Fé que ,segundo o próprio Cristo, é o
sentimento que nos dá o poder de “remover montanhas”.