sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A beleza do cotidiano

“Era apenas uma flor qualquer,
uma flor de mato”.


Para a velha caminhando na calçada, nada dizia o barulho de martelos e guindastes levantando tijolo a tijolo o edifício da pequena cidade. Nem progresso dizia, nem desenvolvimento(palavra que  ela ouvia o povo tanto apregoar). Nada além de ruídos exasperantes, ruídos que mais magoavam seu corpo de anciã. Tampouco o buzinar dos carros ou seu passar veloz congregavam-na ao mundo evoluindo ao seu redor.

    Tudo nela era abandono, prenúncio de túmulo: o curvar de seu dorso buscando o caminho da terra, a frouxidão das mãos levando a bolsa sebosa e vazia de bens. Não pertencia à classe daquelas que de cabelos alvos e tratados, recebem dos netos: chinelos aveludados, lavandas cheirosas ou quaisquer outras espécies de afagos. Não. Fora mulher de viver rude, dolorido, de apenas dar-se, de estender o ventre generoso e de novo murcha-lo por tantas vezes, para dar tantas vidas à luz que já nem podia enumera-las; de servir em labutas pesadas a bem de alimentá-las. Cada filho agora em rumo distante ou ignorado. Como saber até se dentre os dois que restavam, era Pedro, o que trabalhava nos fornos da fabrica, ou José o que ia à pedreira o que lhe nascera primeiro?

    Mas, também, o que isso lhe importava? Só o que sentia mesmo eram a lassidão e a moleza de suas juntas, como se elas estivessem a desmanchar-se; dor aguda cada vez que tentava espichar-se; vazio no lugar da fronte quando queria reportar-se a fatos passados. Só a ruína de seu próprio corpo a devora-la. Tudo isto em seus olhos: dureza, falta de amanhã.


    Porém, surge o milagre do cotidiano! Não escolhe número de dores ou de anos vividos. Os olhos da velha repentinamente revestem-se em fulgor de entusiasmo, em ternura de gente afortunada! Passava ela justamente, lado a lado com o terreno abandonado, um dos poucos que o progresso da cidade poupara. Esquina onde o mato crescida selvagem, acrescido de galhos espinhosos que por ali todos usavam largar. Mas no meio dele estava a flor. Uma única flor balouçando perfeita, intocada. Simples. É singela. Flor que não serviria para ornamentar casa abastada. Sem nome que lhe desse qualquer dignidade, fosse Cravo, ou Dália. Era apenas uma flor qualquer. Flor de mato. A velha porém...

    Seu esforço foi heroico! Embrenhou-se por entre os galhos do terreno. Prendeu a saia em espinhos e ,levando-se em conta como eram fracas as pernas que a levavam, safou-se com vigor de mocidade.

    Seu objetivo era a flor. Pegá-la. Levá-la. O peito da velha arquejou ao alcançá-la. Tem–na agora por entre os dedos apertada. Novo esforço de retorno à calçada, com vitória nos olhos embaçados.  Se o contato com a flor lembra-lhe a maciez na pele dos tantos bebês que gerara, ou o carinho do primeiro namorado... Só ela sabe.

    Vai a velha com seu tesouro singelo, já a murchar-se contra o calor de seus dedos encarquilhados. Passos lentos mas rosto iluminado. Acaricia com ambas as mãos pétala por pétala a brandura da flor, talvez a única beleza que entre a sordidez de seu mundo, ela encontrou por acaso.

A consagração da natureza - Culto às estações


Texto extraído do meu livro
“A influência de crenças e símbolos”


    Na crença de que homem e natureza seguem os mesmos princípios divinos em suas transformações periódicas, as estações são acreditadas como fazendo correspondência com as idades do homem e gerando também cultos.
    A PRIMAVERA–Ela é o nascer, o brotar, o florescimento. Como uma semente que sai de seu casulo, o homem deixa também o refúgio uterino, manifesta-se no mundo externo, fazendo face a ele com uma fragilidade ainda infantil. Inicia a sua evolução com todo o vigor de algo novo, de uma primavera tanto bela quanto inexperiente.

   No mito da roda do ano celta, em 21 de março, homenageava-se a deusa da primavera. Já desde a véspera deste dia, fazia-se o ritual à Eostre ,quando, sobre altares, eram depositadas flores; e Kore, a deusa da escuridão invernal, recebia sua despedida. Coroas floridas enfeitavam depois os bosques e neles comiam-se ovos coloridos, símbolos da matriz da vida.
  Ali, tinha início danças ao redor de um pau de fita, danças também simbólicas do dinamismo existencial que a primavera trazia.
   O VERÃO–Braseiros eram acesos em toda parte. Principalmente na noite de São João ,por séculos, fogueiras continuaram sendo acesas,costume com que o Cristianismo substituiu as festas pagãs deste solstício. Na Bretanha, lendas afirmavam que galinhas eventualmente podiam por ovos de ouro neste dia , e na região dos dolmens e menhirs usava-se sair buscando, por sobre as pedras, tesouros em ouro que –acreditava-se- gênios solares haviam ali escondido. 

 
O verão é o explodir total da natureza. Só nele ela é capaz de resistir a emissão de raios solares poderosos. No homem, é a sua maturidade. Nela deixamos a tenra e tão sensível condição de adolescência , para sermos capazes de melhor suportar embates negativos, podemos perceber com mais facilidade situações que são apresentadas ao nosso discernir.
    O OUTONO - Na Grécia, o outono dava início aos Mistérios de Elêusis.Em seus ensinamentos e ritos,o iniciando pacificava-se quando chegava a entender porque nascia e porque morria.
 



    As celebrações eram dedicadas a Demeter e sua filha Perséfone, simbolismo de um equilíbrio entre o dinamismo de um solo que entregava frutos (Demeter) e o repouso da semente no fundo da terra (Perséfone), entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.
   Também para o homem é o tempo de uma introspecção que lhe dá equilíbrio. É quando colhe para si o resultante de seus plantios.
   Assim como nos ritos de Elêusis, onde eram abolidas magias para obtenções materiais, assim também o ser outonal vive uma fase em que pouco pede, apenas avalia e agradece. Lembremos que no equinócio de outono dos celtas seu culto principal era o de “Ação de Graças”. Equilíbrio ,introspecção, avaliação e preparo à morte (que na natureza correspondia a diminuição do calor solar) eram os princípios atribuídos a esta estação pelos povos antigos.
   O INVERNO - Tanto para a natureza, como em relação às idades do homem, ele é o tempo de repouso que antecede um renascimento. Os povos nórdicos e gauleses costumavam obedecer a ritos nos quais, durante os dias que antecediam ao solstício de inverno, permaneciam em jejum, com suas atividades momentaneamente suspensas e paralisando todas as rodas ,uma vez que estas simbolizavam a dinâmica da vida. Pelas proximidades do dia 21 de dezembro (inverno no hemisfério norte) reuniam-se em sabbats nos quais passavam a noite numa vigília de orações, em penumbra, com as velas dos santuários apagadas,reverenciando a noite que-segundo acreditavam- guardava em si uma semente que se faria luz assim que a aurora surgisse.

 
    Pela madrugada, as rodas, nos santuários e por toda a parte, eram postas a girar ,na representação da continuidade do existir.
    Evocações eram feitas para que o rei da escuridão, do azevinho, que fora colocado sobre altares, desse lugar à luminosidade também ali representada pelo visco-parasita do carvalho. Ao amanhecer todos iam louvar em locais abertos junto à natureza, os primeiros raios de sol com efusões de grande alegria.
    Os ritos e festejos invernais do paganismo nos legaram algo muito importante: a certeza numa vida que se perpetua além do morrer e renasce continuamente.