No século VII, vivia na cidade de Medina na Arábia, um homem de meia idade chamado Mosab. Sua vida era muito difícil. Já fora adestrador de falcões e durante uma queda ficara capenga. Porém, viajara várias vezes ajudando caravanas de peregrinos que iam até a Pérsia. Lá, aprendeu Geometria, Cálculos e os segredos da Astrologia com sábios sacerdotes. Quando não pode mais trabalhar com falcões por estar capenga, mudou-se para Damasco, na Síria e ali conheceu Takla com quem se casou. Sua profissão ali não era das mais rendosas, tornou-se um professor. Ensinava Astrologia e Geometria. Era um homem muito estimado por seu gênio paciente, mas para poder sustentar uma esposa e uma filha tinha que contar com Takla que, muito ativa, bordava tapetes com cenas do Alcorão.
Um dia bateu em sua porta um emissário do califa de Damasco. Este lhe mandava uma ordem para que comparecesse perante ele. Mosab ficou lívido de emoção. O que –pensou ele- aquele poderoso rei havia de querer com um homem tão humilde como ele? Após muitas conjecturas sobre aquele honroso convite, pôs suas melhores vestes, seu turbante novo, sua melhor túnica e foi atender a ordem.
Quando atravessava os luxuosos salões para chegar até o rei, ouviu de nobres muçulmanos comentários desdenhosos como; O que quer nosso soberano ouvir deste astrólogo capenga? Mas a entrevista foi cercada de mistério. Todos os secretários foram convidados a se retirarem, ficando a sós Mosab e o califa. Este então esclareceu em tom amistoso.
_Tenho recebido muitas informações elogiosas a teu respeito. E, a minha atual favorita é amiga de sua esposa Takla e falou-me varias vezes de tua sabedoria, então para agradá-la quero nomear-te para o cargo de meu primeiro ministro.
_Eu, primeiro ministro? Repetia Mosab estupefato.
_Exatamente- confirmou o califa e passou a nomear as capacidades que seriam aproveitadas em Mosab: És um homem honesto. Conheces os segredos da Geometria de Euclides. Sabes então muito bem lidar com números e contas. Conheces também Astrologia e a qualquer momento poderás dizer-me como está a trajetória dos planetas no céu. Ninguém duvida da tua sabedoria em interpretar o Livro Sagrado, o Alcorão de Alá. Julgo-te, portanto o mais confiável para vigiar as despesas do tesouro do meu califado. Porém - continuou o rei- só poderei te nomear meu Grão Vizir depois que responderes duas perguntas.
_Ò nobre soberano- respondeu Mosab - só direi a verdade sejam quais forem as conseqüências.
_Bem, Então esta é a primeira: Tens amigos entre a população de Damasco?
_Sim. Tenho bons amigos em toda a parte, entre sábios e ignorantes, ricos e pobres. Tanto na mesquita como no mercado estou sempre rodeado de amigos.
_ Muito bem. Então passo à segunda: Tens inimigos entre os muçulmanos de Damasco?
_Não. - Respondeu ainda com sinceridade Mosab - Sempre só contei com muita afeição. Estou certo que durante toda a minha vida não fiz um só inimigo.
_ Então- declarou o califa- sinto muito, mas não poderei te nomear meu primeiro ministro.
O bom professor abaixou a cabeça arrasada por aquele desfecho não esperado, mas o califa tornou a explicar-se: _ Observe bem: Sou um rei generoso, mas tenho inimigos dentro e fora de minhas terras O grande profeta Maomé, um enviado divino, teve inimigos cruéis que tentaram por todo jeito vencê-lo até matá-lo. E Alá, o misericordioso, também tem inimigos. Quem são afinal os hereges que tentam desacreditar Seu nome, senão seus inimigos?
Seria um absurdo que meu primeiro ministro fosse um homem tão fraco, sem expressão, que não conseguisse contar com um só inimigo. Mosab, todos os homens de personalidade forte têm inimigos.
Quando, porém, olhou para Mosab, o rei se comoveu com o seu desaponto e disse;
_ Vou te dar uma oportunidade, Se dentro de 24 horas tiveres arranjado 7 inimigos em nossa cidade serás meu primeiro ministro. Vá que eu te esperarei aqui amanhã após a terceira prece do dia.
Ao sair do palácio, Mosab passou por um homem vendendo água, pensou então em agredi-lo derrubando a água, o tornando o seu primeiro inimigo. Mas depois refletiu. Não teria coragem de agredir um miserável aguadeiro. Era muita covardia. Talvez fosse melhor procurar o xeique Ismael e lhe contasse sobre as infidelidades de sua esposa. Os 4 irmãos dela ficariam furiosos e ele assim já arrumaria 4 inimigos. Porém o repugnava fazer intrigas.Desistiu. Melhor então era procurar poetas que tinham fama de talentosos e dizer perante várias pessoas que os versos deles eram horríveis. Mas, a poesia sempre lhe fizera tão bem! Com poderia arranjar inimigos incomodando homens que só viviam para as coisas delicadas das artes. Impossível.
Quando chegou em casa sua aparência assustou sua esposa Takla.
_O que foi que o califa te disse que te perturbou tanto?- perguntou-.
_ Exigiu-me arrumar em 24 horas 7 inimigos em troca de um cargo de Vizir. Mas como arrumá-los entre estas pessoas de Damasco tão solidárias com a nossa pobreza?
_Ora –respondeu Takla- só isto? È muito fácil arrumá-los. Deixa que eu trate disso.
_ Por favor, Takla, não quero que consigas inimigos agredindo nenhum de nossos prezados visinhos.
_ Não o farei -disse ela muito animada- Senta-te ai sobre esta almofada bem tranquilo, fica lendo tópicos do Livro Sagrado, e te garanto que nem terás terminado todas suas Sutras e eu já terei arranjado teus inimigos e o rei amanhã te fará primeiro ministro.
Takla saiu, mas Mosab nem conseguia fixar-se no Alcorão. Pensava em tudo que poderia perder: Via-se ao lado do rei recebendo homenagens de nobres maometanos. Iria com certeza morar num palácio com fontes e jardins, onde receberia seus amigos poetas. Sua filha naturalmente se casaria com um nobre dono de milhares de tamareiras e afinal tudo estava perdido. Não acreditava que Takla fosse capaz também de fazer inimigos. Mas, dali a umas horas ela aparecia radiante.
_Meu marido – disse – já está tudo arrumado. Era de sete inimigos que precisavas? Pois te garanto que já arrumei mais de setecentos.
_ Por Alá, Takla, o que fizestes? Quantas pessoas agredistes?
_ Nenhuma. Apenas chamei algumas de minhas conhecidas para uma reunião e nela declarei, como se já fosse um caso já consumado, que o califa tinha te escolhido para seres seu primeiro ministro. A surpresa foi tão grande que tive até que jurar pelas barbas do profeta Maomé. Surpreendi alguns cochichos assim: Este rei deve estar doido de contratar uma capenga para ministro! Quando declarei que era amiga da sua favorita, notei já algumas expressões de inveja e logo ouvi sussurros onde alguém dizia: Este rei realmente nunca soube escolher os seus auxiliares!
_ Mas Takla – argumentou Mosab – Como é que apenas com comentários maldosos de algumas mulheres vais me trazer tantos inimigos?
_ Ai é que te enganas. Elas contarão a notícia há pelo menos vinte pessoas, estas a mais vinte e assim progressivamente a estas horas mais de cinco mil homens de Damasco já estão a par da notícia e o ódio que vem da inveja vai estar no coração dos mais ambiciosos.
No dia seguinte Mosab foi a presença do rei para contar-lhe o estratagema de Takla.
_Agora compreendo-disse o califa- porque hoje na audiência da manhã vários secretários fizeram tantas referências nada elogiosas a ti. Chegaram a contar-me que tu te disfarças num pobre professor capenga, quando na verdade és um espião com cúmplices no Egito, aos quais prometestes revelar segredos de nosso Estado. Outro disse-me que te surpreendeu preparando com teus estudos de Astrologia, sortilégios para matar toda a minha família real. Já vês que todos estes teus inimigos foram inspirados pela inveja surgida em apenas 24 horas, graças ao estratagema de tua esposa. Amanhã, sim, Mosab, assumirás o cargo de meu Grão Vizir. Mas te dou um conselho: Quando tiveres qualquer dúvida na condução do meu califado, consulta Takla. Não há nada mais precioso do que se ter uma esposa com tanta perspicácia quanto aos sentimentos humanos.
- Extraído de “Novas Lendas Orientais“ de Malba Tahan.