Santa Sara. |
O dia 24 de Maio é aquele
consagrado à santa Sara padroeira dos ciganos.
Em regiões como a de Camargue na
França e especialmente na Provence, as peregrinações para onde ocorrem ciganos
do Egito e da própria Europa, já é uma tradição secular.
Tais homenagens à Sara se estendem
até o dia 25, levando em procissões sobre andores enfeitados de cores vivas, a
imagem da santa de pele tão escura quanto à dos ciganos e em muitas tendas
espalhadas pelo mundo ela é cultuada.
Lembrei-me então de minha visita
anos atrás á Provence onde cheguei a assistir tais festividades e me foi
narrada a seguinte história, talvez lendária:
Por volta do ano 70 após o
Cristo, fugitivos das perseguições aos cristãos na Judeia, a deixou, tomando um
barco muito tosco, com poucas condições de navegar, o que provavelmente os
teria afogado. Porém, por um milagre, através do Mediterrâneo conseguiram aportar
numa praia ao sul da França, ficando depois o grupo abrigado na região do
Camargue. O grupo contava então com 3 Marias: Maria Madalena, Maria Salomé,
Maria Jacobé e Marta.
Igreja de Les-Saint-Maries-de-la-Mer. |
Lenda ou não, o certo é que o local, que ao
chegarem chamava-se “Le petit Rhone”, passou a chamar-se
“Les-Saintes-Maries–de-la Mer”. Com elas veio também uma cigana egípcia de nome
Sara, serviçal de uma das Marias.
Na convivência com elas certamente
foi quando a cigana adotou o Cristianismo que se espalhou depois entre o seu
povo, hoje constituído de agrupamentos devotamente cristãos (lembremos que a
estátua de Nossa senhora Aparecida do Norte é também intensamente venerada
pelos ciganos brasileiros).
Como a tradição cigana é
absolutamente oral (jamais registraram por escrito a sua História) todas as
conjecturas sobre a origem do povo de Sara são enevoadas, envoltas em
mistérios. Contudo, os ciganos contam entre eles com muitos anciãos que são
exímios narradores. Esses afirmam ter o povo cigano a sua origem na Índia. Isto
será bem possível, pois os estudiosos de línguas nos dizem que o Romanê,
língua cigana, tem incontestes raízes nos idiomas mais antigos da Índia.
Ali, teriam sido nômades, sempre
em movimentação. Não eram bons cavaleiros, mas criavam, tinham e negociavam
cavalos, que usavam para puxar suas carroças condutoras de apetrechos de suas
tendas, à cada mudança feita. Quando pararam por um tempo mais longo, foram
perseguidos por tribos muito aguerridas, o que os obrigou a se espalharem pelo
mundo, sendo o seu primeiro lugar a habitar, o Egito.
Outras narrativas de anciãos jogam
suas tradições também para um tempo bem distante pois contam que já pela época
de Júlio Cesar (Séc.V A.C.) já havia ciganos em Roma. São descritos trabalhando
ali em circos, fazendo mágicas e bruxarias, contando histórias, prevendo
catástrofes através de símbolos. Era lá uma classe social marginalizada a qual
os tributos devidos à Cesar eram cobrados com violência . A eles só cumpria obedecer.
Crianças ciganas. |
Aliás, os ciganos sempre foram
perseguidos. Na Idade Média, a Inquisição os perseguiu pois suas práticas de
tarólogos, astrólogos, quiromantes, seus trabalhos com pêndulos, leituras em
copo d’água, jogos moedas, eram todos rotulados de bruxaria.
Na Idade Moderna tiveram as
perseguições do Nazismo. Por elas morreram 600.000 ciganos. Suas peles escuras nada os favorecia em meio a
uma doutrina arianista que refugava aqueles que não a tivessem clara para serem
considerados da “raça pura” ariana. Assim como os judeus, também foram levados
à Campos de Concentrações.
Há uns séculos atrás a maioria
cigana eram analfabeta, mas a modernidade a contagiou e já no Séc. XX encontramos muitos de seus descendentes
estudando. São já ciganos sedentários. Há uns 27 anos, uma pesquisadora,
diretora do Centro de Estudos Ciganos no Brasil, publicou várias obras e
inúmeros artigos sobre a sua cultura. Nele, nos conta as entrevistas que teve
com ciganos formados em advocacia, medicina, professorado, psicologia,
antropologia e entre eles já mulheres
com cursos secundários.
No entanto, mesmo influenciados que
sejam pela modernidade, não abandonam seus hábitos diários seculares. Quando
constroem uma casa já a situam em grandes terrenos para colocarem ao lado uma
tenda. Alguns entrevistados da pesquisadora
lhe afirmaram se sentirem emparedados, tolhidos em sua liberdade se não se
proporcionarem de tanto em tanto dormir na tenda. Geralmente dormem pouco e o
importante é saírem à noite para sentirem as estrelas sobre suas cabeças.
A selva de pedra de nossas metrópoles
não os atrai. Preferem viver em cidades pequenas onde através de suas
organizações administrativas (e hoje elas já são algumas) podem recorrer a
vereadores e prefeitos amigos para lhes proporcionarem local onde colocar suas
tendas
Pela própria vivência de percorrerem países, assimilam alguns de seus hábitos, do que
resulta grupos diferentes entre si. Assim temos os grupos Calon, o Rom, o
Kalderashi, o Ragare. Porém, são pacíficos e
nunca ouvimos notícias de lutas entre eles.
Prezam a amizade e quando uma
afinidade é grande entre duas pessoas, podem sacraliza-la fazendo entre si um
pacto. Dão uma picada de agulha nos dedos de ambas e depois uma chupa uma gota de sangue da outra, estando assim ritualizada uma amizade eterna. Costumam firmar relações com
amigos com encontros chamados “brodes”, espécie
de saraus onde dançam, contam historias e declamam poesias.
Cartomante cigana. |
Quanto a sua religiosidade são
monoteístas, nunca se envolveram com deuses. Cristão, creem na vida pós a
morte, não exatamente como faz o Espiritismo no seu intercâmbio com
desencarnados, mas como supersticiosos que são os ciganos, temem as almas de
falecidos que podem, conforme pensam, vir a lhes cobrar algo. Acreditam na alma
imortal que chamam de “Mulé”.
Seus casamentos são monogâmicos e as
meninas são dadas em casamento muito cedo, logo que lhes aparece a primeira menstruação. Geralmente é requerida a virgindade a mulher noiva. Dificilmente veremos um
cigano casado com uma não cigana e vice versa, pois são muito zelosos da
preservação genética da sua raça.
Sobrevivem com homens (refiro-me aos
não letrados) fazendo lindos tachos,
utensílios e pingentes de cobre, colchas, tapetes. As mulheres (que são mães
amorosas) contribuem para as finanças domésticas com a Quiromancia e a
Cartomancia. Com elas asseguram ter sempre belas bijuterias que tanto gostam de usar.
As lendas narradas pelos anciãos são de
grande beleza como esta: Um cigano violinista sonhava que um dia um pássaro conseguisse reproduzir as suas belas melodias.
Esperou por isto toda a sua vida. Um dia ficou velho e morreu. No mesmo dia, sobre uma galho, surgiu um pássaro muito amarelo e cantou, cantou, imitando a
melodia do violinista. Assim nasceu o Canário que reproduz, com perfeição,
toda a magia de um violino cigano.
Aqueles ciganos já letrados, devido
talvez pelo seu milenar amor pela natureza, tendem a ser poetisas e poetas
inspirados. Aqui, reproduzo um verso de
Any Reis do grupo Ragari, tirada do livro “Lendas e histórias ciganas” pág.154.
Somos
Livres como os campos imprevisíveis como a
estrada
Misteriosos como o mar leves como o ar
Andantes como o rio Argutos como a raposa
Secretos como os bosques Sentimentais como a musica
Ligeiros como os ventos Verdadeiros como as
crianças
Ardentes como o fogo Incompreendidos como a verdade
Cautelosos como a noite Assim somos nós, ciganos.
Em um povo onde os seus fatos históricos
não foram registrados, que suas tradições se difundem de boca à ouvido, é
possível que o destino de sua cultura seja ir pouco a pouco se perdendo.
Porém, mesmo que o povo de Sara
desapareça, nós jamais o esqueceremos. Nossas crianças continuarão a lembrar de
suas habilidades de acrobacias nos circos, a lembrarem da paixão dos ciganos
pelos picadeiros; teremos no pensamento a inigualável destreza e graça com que
dançam numa apresentação de Flamenco;
Continuaremos a sonhar com a sorte que nos foi favorável numa leitura de mãos;
E, podemos ainda, seguindo o exemplo dos ciganos, pedir à santa Sara que esta
sorte favorável nos seja concretizada.