Olhos inúteis pelo véu da cegueira, quando
virão luzes penetrar-te as pálpebras? Trevas espessas rodeiam-me a existência.
Conceda-me, Krishna, homem-Deus, Teu favor, desta vez, agora!
Sou eu o digno Brâmane que trilha o mesmo
caminho cada ano. Olhos opacos, bengala nas mãos, sacola aos ombros. Levo a Ti,
Ó Santidade, em Teu templo distante, oferendas, pedras raras, que encaixadas em
Teu altar, Te darão mais pompa e dignidade.
Krishna. |
Meus pés sentem o solo tórrido e árido,
minha mente, porém está povoada de confortadoras lembranças: Tapetes macios
forrando os chãos que piso desde a infância, aconchegantes camas em que meu
corpo tem repousado. Minha é a rica vivenda com jardins de fontes murmurantes,
quantas vozes servis dentro dela me tem ouvido os comandos! Na verdade bem
digna de minha nobre casta de brâmane é esta que tenho levado, No entanto, não
me concedestes ainda, Ó doce Krishna, a luz de meus olhos e quanto a quero!
Quanto!
Oferendas já Te levei e muitas! Todas sem
qualquer resultado! Mas, entre elas, sem dúvida, a mais preciosa é esta que Te
levo agora. Humilde, esperançado, acaricio sob meus dedos safiras, rubis e
topázios. Quanto belo ficará Teu altar, Sublime Amado!
Sentidos diversos, muito mais apurados em
mim que no comum dos homens, conduzem-me sem erro pelos caminhos que tantas
vezes já passei! Cheiros e sons que percebo neles me são tão familiares!
Já não sinto o cheiro pútrido da carne
secando estendida sobre a choupana dos párias? As chagas apodrecidas da
multidão de mendigos me tocando as narinas? A brisa do esterco, da urina de
vaca com que o campônio desinfeta a casa, não me faz adivinhar a penúria de
suas vidas? Podridão, incenso e aragem sanguinolenta dos tísicos, foram sempre
os cheiros que me revelaram os inúmeros mendicantes de meu país.
Contudo, nada devo eu, de opulenta casta
fazer em favor disto. Tudo afinal não acontece por uma lei de reações às ações
que eles mesmos plantaram? Segundo as inexoráveis leis do Altíssimo? Por que
deixar-me abalar pelos lamentos e súplicas dos párias? Se mendigos sonham com a liberdade e eu com a
visão, que cada um siga o seu caminho, implorando a Tua graça, o Teu perdão.
Entre a ladainha de tosses, o canto
tristíssimo de quem, labutando, limpa fossas e excrementos, sigo eu, inativo e
impassível. Em minha alma não pode alojar-se qualquer resíduo de compaixão.
A noite está pondo já sombras refrescantes
sobre a minha Índia, lhe ameniza a quentura, e meu corpo de brâmane necessita
um descanso. O corpo do mundo também guarda ainda calor. Sinto-o quando, com a
cabeça apoiada na sacola de pedras preciosas, deito-me sobre seu solo.
Sob
mim a mãe Terra pulsa em ritmo de coração vívido, concretizando sua trajetória
no cosmos, enquanto eu, verme sobre a sua superfície, espero que Tu, Ó imortal
Krishna, me mude a sorte.
Krishna e sua flauta. |
Não está sendo fácil firmar o sono, Tenho, ao
contrário alerta todos os meus sentidos. Ouço passos que estão ainda muito
distantes. Tais passos porém, aproximam-se cautelosamente em direção a mim. Há
no ar um cheiro fétido de párias, sussurros...Tenho já a certeza que um bando
de salteadores quer roubar-me o carregamento de pedras raras. Preciso cautela,
muita cautela para não perdê-lo aqui. Deixarei que mais se aproximem...
Um dos párias tem já as mãos sob a minha
cabeça. Toca-me a dádiva. Agora sim, num gesto repentino, eu lhe agarro o pulso
esquálido, com a potência de quem sempre nutriu-se bem, viveu em abastança .Tua
oferenda , Ó Senhor Krishna, está em jogo e eu reforço meu grito ,com toda a
força da minha devoção a Ti:
- Que intentas, ó paria amaldiçoado? Queres
roubar a oferta que alguém leva para o seu Deus? Além de ofenderes à Krishna, ousas
perturbar o sono de um digno brâmane?
Mantendo o pária preso às minhas mãos,
sacudo-o com arrogância. Ele, dobrando o corpo sobre o peso da própria
humildade, toca várias vezes a cabeça ao chão e lamenta-se:
- Ó nobre senhor, deixa que eu apodreça
sobre esta terra! Seja eu mesmo tão impuro que nem na hora da morte o fogo
purifique meu corpo de intocável! Tão profunda é a agonia de minha vida mísera,
que esqueci-me de quanto é transitória! Não me promete o céu de Brahma mais
delícias do que a tua carga de joias pode me dar? Seja eu sempre proscrito,
ilustre brâmane, para sempre impuro.
Retendo soluços, o pária vai silenciando-se e
eu, Oh! Sublime Krishna, não posso impedir que o peso insignificante de seu
braço em confronto com a força do meu próprio corpo me cause um súbito mal
estar, que vá transformando-se em piedade e, por fim, num ímpeto de amor por
aquele miserável homem, num amor tão fraterno e intenso como jamais senti.
Minhas mãos se afrouxaram em seus pulsos e
minha voz soa com uma suavidade nova, inusitada em mim:
- Vá embora, intocável, leva contigo esta
sacola! Distribui seu conteúdo entre o teu bando. Faça reverter essas joias em
conforto para suas vidas execradas! Que o perfume dos lírios substitua em tua
cabana o cheiro de urina e das chagas putrefatas! Que, daqui em diante, medites
nas delícias do céu de Brahma, com os lábios adoçados pelo sabor de cerejas e
damascos! Que sejas tão limpo, sadio e belo como a imagem de um deus! Leva a
carga de nosso Senhor Krishna depressa! Leve-a enquanto te lastimo tanto! Vá,
corre com ela!
Monte Kailash, onde segundo a mitologia hindu, moram os deuses. |
Levanto o pária atoleimado e lhe grito: - Corre
antes que me passe este instante de piedade, o primeiro em que um amor tão
incontrolado me possui assim! Vá!
Foi-se o pária. Tudo está silencioso neste
vale deserto e eu deito-me ao chão com o peito agitado por emoções as mais
contrárias. Lágrimas escorrem-me dos olhos inúteis ao lembrar que deixei, Altíssimo
Mestre, de prestar-Te a homenagem devida. Teu altar ficará nu de rubis, esmeraldas
e topázios. Neguei-Te a oferenda para doa-la a um intocável! Porém Amado, a
transferência desta carga de pedras das minhas mãos para as dele, faz também
meu ser exultar de leveza e liberdade, como se apenas ela fosse dar para mim um
fruto, um rendimento que irá perdurar! Que exultação tão plena foi sentir
naquele pária um irmão! Haverá, na verdade algo mais doce, Ó amado, do que
poder–se chamar outro homem: ”meu Irmão” ?
Mesmo que seja eu em seu lugar, agora um
proscrito, que mantenhas em trevas irremediáveis os meus olhos... Eu nada quero
mais... Meu ser todo vive o momento sublime do amor, da piedade... Está todo em
paz.
Em que alturas supremas andou minha
consciência para que assim eu me pacificasse? Agora, porém, repentinamente ela
volta a fixar-me em minha condição física! Meus olhos ardem, ardem muito! Tal
como se uma chama abrasante estivesse junto a mim. Mas, se trevas rodearam-me
sempre e sempre! Que luzes são estas penetrando-me as pálpebras?
Eu vejo luzes! Vejo! É o milagre! O milagre
por tanto tempo esperado! Por fim, Senhor, me agraciaste!
Distingo
já no céu de minha Índia miríades e miríades de estrelas!
O chão
até onde enxergo na distância as montanhas, até aonde sumiu correndo o pária, o
meu irmão, é um lençol de minúsculos grãos que cintilam sob o luar. Um mundo de deslumbrante beleza é primeira
visão que me estás concedendo, Ó Krishna, ser divinizado!
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